Por Dorothee Rüdiger
Nunca se sabe, se a família vai se reorganizar, juntando, de repente, filhos e até netos de vários casamentos, ou se, ao contrário, a casa vai ficar vazia, porque a prole resolveu morar com outra família
Amor, enigmático amor. Palavras não são capazes de dizê-lo. Cada geração o reinventa. No século XXI, nem todos os amores levam ao altar. Muitos casais dispensam a formalidade do casamento e simplesmente “juntam os trapos”, como se diz, sem a menor cerimônia. Outros já fazem questão de celebrar o amor diante de Deus e o mundo para se tornarem felizes para sempre. … ao menos por enquanto. Pois, no rumo da “longa estrada da vida” podem surgir outros encontros, outros amores, outras famílias e outras cerimônias. O amor está fluido, líquido, como quer o filósofo Zygmund Bauman. Não escolhe lugar, não escolhe par, nem sexo, nem momento. Invade. Acontece.
O amor cria e recria laços familiares. O aniversário de uma criança pode tornar-se alegre ponto de encontro de vovós e vovôs com seus antigos e novos consortes. Mas, as festas em família podem tornar-se ocasião para aquela saia justa. Quem não conhece os dilemas colocados pelos novos laços familiares? Será que os noivos sexagenários convidam, além dos atuais genros e noras, também os ex-genros e a ex-noras para a festa das bodas de ouro? Quem dança a valsa com o bacharel recém diplomado na festa da formatura? Será que cabe essa honra à madrasta, quem criou o garoto, pagou sua formação, do jardim da infância até a faculdade, acompanhou tarefas e boletins e o fez colar o traseiro na cadeira para passar de ano, ou à mãe, quem o entregou à outra e tomou o bonde do destino rumo à emancipação? Haja tato!
O amor líquido não invade só as festas. Arquitetos estudam, há tempos, um jeito de expandir e encolher casas. Nunca se sabe, se a família vai se reorganizar, juntando, de repente, filhos e até netos de vários casamentos, ou se, ao contrário, a casa vai ficar vazia, porque a prole resolveu morar com outra família. Juízes das varas cíveis de pacatas cidades do interior já fizeram contato com as conseqüências da nova forma mais light de se amar. São obrigados a darem sentenças salomônicas. Quem é o pai da criança? Quem é sua mãe? “Tragam uma espada! ” Julgar o amor que foge das normas do código civil, que tarefa!
Que seja eterno, enquanto dure, esse amor líquido. Pode durar uma noite, um encontro amoroso, e nem por isso deixa de ser amor. Às vezes, o fruto desse amor relâmpago jamais vai saber de sua origem, de seu pai biológico. Há problemas com isso? Muitos são os homens que se casam, sabendo ou não, com mulheres grávidas de outros homens. Dúvidas? Os geneticistas do Centro de Estudos do Genoma Humano da Universidade de São Paulo já não se espantam com o fato que muitos cidadãos não têm compatibilidade genética com os homens que alegam serem seus pais.
“Bando de cornos, ” dir-se-ia ainda há poucos anos. Parece que nos tempos da moral e dos bons costumes familiares, nos quais a repressão sexual mandava as mulheres casarem virgens e impedia aos homens a “pularem a cerca”, a rigor, as relações familiares eram mais simples. Pai era o marido da mulher… e basta. Existia a “presunção da paternidade pelo casamento” para os juristas, sem problemas. Via de regra, então, o pai era idêntico ao dono do esperma genitor. E ai se não fosse! O outro lado da medalha eram as clássicas neuroses, das quais Sigmund Freud nos traz seu testemunho clínico e formaram os alicerces da psicanálise de outrora.
No século XXI, muitos homens assumem a função paterna, porque o amor é mais forte que a moral, os bons costumes e a genética. No entanto, quando se trata de ser ou não ser portador de uma doença genética, de poder ter ou não filhos sadios, a paternidade, de repente, torna-se questão importante. Nesse caso, a “saia justa”, muitas vezes, sobra para médicos e geneticistas: revelar ou não o segredo do dono do esperma?
Sem normas nem moral a seguir, sobra para os que amam responsabilidade. Não a responsabilidade do dolo ou da culpa que nem para os juristas não presta mais, mas a responsabilidade diante das constantes mudanças na vida, como Jorge Forbes não cansa de dizer. O amor obriga a pesar palavras, atos, decisões. Disso depende, se a vida de quem se deixar levar pelo amor vai ser um inferno ou uma festa. Que seja uma festa com direito a bolo, champanhe e flores, é claro!
Dorothee Rüdiger é psicanalista e doutora em Direito pela Universidade de São Paulo