Por Andreza Rocha
A identificação atua como uma proteção, mas também pode ser uma armadilha
O conflito entre a população de Humaitá (AM) e a comunidade indígena localizada naquela região estava em pauta no dia 30/12/2013, tanto em jornais impressos, como a Folha de S.Paulo, quanto nos eletrônicos, como o Jornal da cidade de Bauru. Chamou a atenção que, ao noticiarem o clima de tensão na cidade de Humaitá gerado pelo desaparecimento de três homens brancos após serem vistos trafegando de carro pela Rodovia Transamazônica, a mídia tenha publicado depoimentos de pessoas cujo conteúdo levou-nos a pensar a respeito das complicações do processo que a psicanálise, desde os tempos de Freud, tem chamado de “identificação”.
Tomemos como exemplo o da funcionária pública Marlene Souza, uma senhora que, ao ter contado que uma menina índia teria se tornado amiga de sua filha, numa escola particular, afirmou: “Temos índio aqui que é professor, a gente respeita como seres humanos, mas como podemos confiar neles depois do que aconteceu? Por mim, eles podiam voltar e acabar com tudo isso, mas não sei quanto à população. Revoltada, a população é capaz de tudo”, alertou.
A fala da senhora Souza é bastante curiosa. Logo após ter afirmado a existência de professores indígenas, achou por bem ressaltar que eles são respeitados “como seres humanos”, deixando, portanto, implícito, que não o são como profissionais. E, mesmo, ao afirmar o que ninguém estava negando, ela acabou criando um efeito de denegação, negando, inclusive, que como seres humanos eles são respeitados. Será que essa senhora se dá conta do quanto sua fala é preconceituosa?
Comecemos pelo princípio. A identificação está mais para algo plural. Melhor seria entendê-la como “identificações”, algo múltiplo, pois nomeia as estratégias às quais os indivíduos recorrem para dar conta da construção do “eu”, armadura(s) para lidar com a realidade. A senhora Souza, por exemplo, no contexto no qual está inserida, construiu um “eu” no estilo “apaziguador”; que respeita índio como ser humano (!) e que consegue, inclusive, passar por cima dos conflitos (“Por mim, eles podiam voltar e acabar com tudo isso”).
Pensar a identificação como um tipo de armadura alerta para o fato de que as identificações atuam como uma proteção que, embora tenha o mérito, agregar o indivíduo, também pode atuar como armadilha. É o que ocorre no fim da declaração da senhora Souza, quando ela se revela identificada à “população” e alerta: “não sei quanto à população. Revoltada, a população é capaz de tudo”. Para quem perdeu a inocência ao longo de uma análise, percebe-se que essa frase é um aviso de quem a enuncia, sem o saber. Eis o sujeito dividido: ele pensa aceitar os índios, mas, sem dar-se conta, avisa que seria capaz de atos bem pouco civilizados.
Enquanto esse tipo de divisão não for colocado em cima da mesa, e lido, com crueza, por meio da utilização dos bisturis que a clínica psicanalítica nos oferece, o sonho da construção de uma escola plural, onde, de fato, haja lugar para as singularidades não vai sair da cartola dos educadores e dos psicanalistas. Em tempos de começo de ano, quando convencionamos renovar nossas esperanças, o discurso da senhora Souza pode nos dar um bom pretexto para conversar a respeito do personagem, do roteiro e do tipo de espetáculo que queremos inventar em 2014.
E, o mais importante: para localizar o vilão. Mesmo que, em nosso filme, exista um vilão indígena que, do nada, saia por aí matando brancos inocentes (o que já é meio estranho), por que ele teria que ser o professor da escola da cidade? Aparentemente, nesse caso o “vilão” é a lógica fálica, a do todo. É ela que permite pensar que “Todo homem não presta”, “Toda mulher é louca”, “Todo índio é assassino”. Na escola do século XXI, um pouco de “não-todo” viria bem a calhar.
Andreza Rocha é pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisa Produção Escrita e Psicanálise – GEPPEP, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, onde obteve o título de Mestre em Educação.