Por Maria da Glória Vianna
Aumentar o tempo de formação dos médicos não basta para tornar os currículos dos cursos de medicina mais humanizados
O Ministro da Educação Aloizio Mercadante anunciou uma alteração na grade curricular do curso de medicina. A partir de 2015, o curso passa de seis para oito anos de duração. Nos últimos dois anos, o ciclo de formação será feito no Sistema Único de Saúde (SUS). Na avaliação de Mercadante, a experiência no SUS vai “humanizar” a formação universitária. Frente a essa posição, perguntamos: Basta atender pessoas desprovidas de recursos financeiros para ficar mais humano? Quais são os principais nós dessa formação?
Lembremos que a palavra “diagnóstico” vem do grego, significando “ver através”. Indica que o profissional precisa saber atravessar a cortina de fumaça das palavras que lhe são dirigidas quando o paciente chega com suas queixas. Se tomarmos, por exemplo, uma especialidade médica como a ginecologia, veremos que, na prática, vários dos sintomas relatados excedem ao campo do que compete à ação do ginecologista. Nesse momento, pode fazer duas ações: encaminhar a paciente para outro profissional ou peneirar o que deve ou não ser valorizado daquilo que está sendo relatado.
Para iluminar as complicações de uma época em que os médicos de família são exceção, e as especialidades se multiplicam, procuramos o professor José Roberto Filassi, professor livre docente em ginecologia pela Universidade de São Paulo (USP) e coordenador de mastologia do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (ICESP) para discutir a prática do consultório do ginecologista, profissional que atende mulheres cujas queixas físicas, algumas vezes, excedem ao corpo biológico.
Filassi conta que alterações de peso, distúrbios menstruais e secreção vaginal são as principais queixas das mulheres que procuram o ginecologista atualmente. Para o médico, a partir do reconhecimento da diferença entre o quadro físico e, por exemplo, os efeitos das alterações hormonais e consequentes mudanças no humor, ginecologista e psicanalista podem fazer parcerias produtivas. Segundo ele, às vezes, antes mesmo do exame clínico, é possível perceber que a queixa da mulher advém de um sofrimento psíquico.
Em sua clínica, dor mamária e dor ou incômodo na região vulvar – sem sinais clínicos que justifiquem esse aparecimento – talvez sejam os exemplos mais comuns, devido à cancerofobia (horror mórbido do câncer). Quando isso ocorre, o ginecologista é, segundo Filassi, convidado a se portar como uma espécie de “amigo Freud”, que escuta as queixas da esfera emocional. Para o médico, essa tendência aumenta nas fases da vida da mulher, bem marcadas por alterações emocionais: adolescência, gravidez e o climatério.
Na avaliação de Filassi, é nessa hora que, para muitos profissionais, sobra razão e falta sensibilidade. Muitos médicos se apavoram com o que julgam ser o sofrimento psíquico das mulheres e passam a, por exemplo, aplicar a terapia da reposição hormonal indiscriminadamente. Para ele, isso é um erro. O médico deveria saber “escutar”. A reposição hormonal visa a, exclusivamente, manter a qualidade de vida feminina e sua aplicação é indicada somente quando se fizer necessária. Trata-se de uma terapia individualizada para cada mulher.
Outros exemplos de quadros que exigiriam, por parte do médico, uma escuta mais apurada são aqueles em que a mulher chega dizendo: “Minha avó teve câncer de mama, minha mãe também” e pede uma mastectomia total. Para Filassi, trata-se de uma decisão que precisa ser cuidadosamente avaliada a partir das orientações dadas por um mastologista. Isso porque essa cirurgia é uma conduta de exceção no tratamento e “não deve se tornar regra”.
Filassi ainda aponta que outra situação complicada na clínica ginecológica do século 21 são os novos medicamentos que têm impactos na sexualidade humana, tais como os “famosos azulzinhos”. Eles têm dado origem a sintomas inéditos, tais como HPV em pessoas com idade avançada. O ginecologista afirma que explicar a uma mulher acima dos 50 anos com relacionamento estável que está com HPV é muito delicado, pois, normalmente, ela fica extremamente preocupada e revoltada.
Tendo em vista o exposto, pensamos que repensar o currículo dos cursos de medicina é, de fato, bastante importante, mas não se resume a fazer os jovens profissionais a atender neste ou naquele serviço de saúde. Para aprender a parte “humanitária” para lidar com o paciente, vai ser necessário um pouco mais do velho e bom “amigo Freud”. Mais especificamente, é hora de voltar a aprender a ler o sintoma a partir dos indícios clínicos, tal como Freud nos ensinou.
Existe um limite muito tênue entre a escuta de um médico clínico e o de um psicanalista. Se, para o segundo, é imprescindível localizar os componentes físicos das queixas que lhe são dirigidas e encaminhar o paciente para um médico, para o primeiro, também é necessário reconhecer os limites de sua ação. Será que isso precisa, necessariamente, ser aprendido no SUS? Não sei se as pessoas que já tiveram a necessidade de utilizar esse serviço de saúde se sentiram comparativamente mais bem escutadas do que em outros.
Maria da Glória Vianna é psicanalista, mestre em linguística pela PUC e membro do Corpo de Formação do Ipla