Por Clóvis Pinto de Castro
Um encontro quase silencioso entre Dali e Freud. A não abundância de palavras deu espaço a outro tipo de diálogo: o do olhar
Recentemente, ao assistir a peça de teatro “Histeria”, lembrei-me do poeta brasileiro, Manoel de Barros. Em um de seus poemas, ele diz que a arte nos ajuda a transver o mundo: “o olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê”. Para Barros, o artista não deve usar “o traço acostumado”, pois “a expressão reta não sonha”. Histeria é uma ótima tradução da expressão transver. Escrita em 1993, pelo dramaturgo inglês Terry Johnson, foi traduzida para o português por Jô Soares, que assina e dirige a peça no Brasil. Johnson inspirou-se em um encontro entre o pintor catalão, Salvador Dalí, e o pai da psicanálise, Sigmund Freud, que ocorreu em Londres, em 1938.
Salvador Dalí, um dos ícones do movimento surrealista, tornou-se um entusiasta freudiano ao ler o livro “A Interpretação dos Sonhos”, traduzido para o espanhol, em 1922. Impactado pela obra, Dalí expressou: “fui tomado por um verdadeiro vício pela autointerpretação, não apenas dos meus sonhos, mas de tudo o que me acontecia, por mais acidental que pudesse parecer à primeira vista”. A obsessão por Freud o levou a tentar, por inúmeras vezes, um encontro com o famoso psicanalista. Sem sucesso, recorreu aos admiradores de sua obra, entre eles, Stefan Zweig, escritor e amigo de Freud, que foi convencido pelo mecenas Edward James a intermediar o encontro. Zweig chegou a escrever três cartas ao psicanalista reforçando a importância desse diálogo. Em uma delas, destacou: “Dalí é o único pintor de gênio em nossa época e o mais grato e fiel discípulo das suas ideias entre os artistas”. Em 1938, após tanta insistência, Freud recebeu Salvador Dalí em sua casa, acompanhado por Edward James e Stefan Zweig. Freud estava no crepúsculo de sua vida. Recém-chegado a Londres, fugindo de Viena devido à perseguição nazista aos judeus e intelectuais, carregava em seu corpo, aos 82 anos, as dores de um câncer na mandíbula.
Foi um encontro quase silencioso. Salvador Dalí não falava inglês e nem alemão. Freud não falava espanhol e estava com a audição debilitada. A não abundância de palavras deu espaço a outro tipo de diálogo: o do olhar. Ao relatar a experiência desse encontro, Dalí disse: “Nós nos devoramos um ao outro com os olhos”. E foi justamente com outros olhos que o dramaturgo Terry Johnson “devorou” esse encontro. Fugindo dos “traços retos”, conseguiu tecer uma trama inteligente entre a psicanálise e o surrealismo, entre a psique e o delírio imaginário. Com humor e momentos carregados de dramaticidade, o enredo coloca Freud no “divã”. Por meio da força de outros três personagens, mostra o pai da psicanálise sendo questionado sobre algumas de suas “certezas” e entrando em contato com os seus próprios fantasmas. Assim como no movimento surrealista, Johnson não optou pelos “traços retos”. Foi além do esperado. Histeria é uma (trans)versão do encontro quase silencioso entre Freud e Salvador Dalí. É uma peça que nos remete ao sentido de uma análise: momento de transver, de sair dos traços acostumados, de ir além da linha reta. De caminhar com todos os riscos, risos e o imponderável.
Clovis Pinto de Castro, pedagogo, doutor em Ciências da Religião, gestor educacional e membro do Corpo de Formação em Psicanálise do Instituto de Psicanálise Lacaniana (IPLA)
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