Hannah Arendt e a relevância da vida destemida 14/08/2013

Por Dorothee Rüdiger

Para a filósofa alemã, não é a relevância do assassino que causa a destruição, mas sua irrelevância, sua cega obediência burocrática a ordens alheias

Fumando “feito chaminé”, ela sentava sobre a mesa e cruzava sensualmente as pernas. Era assim que dava aula na universidade. Mas, não é esse o único traço “politicamente incorreto” de Hannah Arendt que aparece no filme de Margarethe von Trotta sobre a vida da filósofa alemã e judia. A vida de Hannah, que era aluna e amante de Martin Heidegger, não gira em torno de como ser moralmente correta, mas centraliza-se na coragem. O filme conta a história de uma mulher que escolheu enfrentar a correnteza do senso comum, da raison d´État dos Estados Unidos, de Israel e da Alemanha Ocidental dos anos 60 do século passado. Ela refletiu e agiu conforme suas próprias convicções, ainda que isso lhe custasse a boa reputação.

Hannah Arendt, tal como apresentada no filme, foi repórter do jornal The New Yorker durante o processo do Estado de Israel contra Otto Adolf Eichmann, um dos corresponsáveis pelo assassinato de aproximadamente seis milhões de judeus durante o regime nacional-socialista. A série de reportagens que Hannah escreveu, publicada atualmente na obra Eichmann em Jerusalém, toca o leitor não somente pela qualidade do estilo literário, mas, sobretudo, pelas reflexões filosóficas que faz a respeito da questão do “bem” e do “mal”, que, por sinal, são muito próximas às reflexões psicanalíticas sobre a pulsão da vida e da morte, ou, sobre o gozo.

Ao longo do processo, a autora, ainda que chocada pelos relatos dos sobreviventes do Holocausto, percebe suas ideias a respeito de um homem capaz de mandar para a morte tantas pessoas não procediam. O homem, Eichmann, não era um monstro, era “normal”. Sua maneira de agir era “banal”. A tese de que a violência mais atroz seja praticada não por facínoras, mas por sujeitos insignificantes – Sigmund Freud diria neuróticos – chocou a opinião pública da época. As reportagens custaram à sua autora sossego, reputação e amizades. No entanto, posteriormente revelou-se como marco histórico no pensamento sobre a violência e o totalitarismo.

Para Hannah, não é a relevância do assassino que causa a destruição, mas, muito pelo contrário, sua irrelevância, sua cega obediência burocrática a ordens alheias. Segundo a filósofa, foi gente comum que nada mais quer do que salvar sua própria pele a responsável pela tragédia do nazismo. Isso porque se torna incompreensível, para a autora, como as vítimas abdicaram da humanização e deixaram se reduzir a números. Tiveram duas mortes. A primeira, ocorrida sem resistência, foi quando abriram mão de sua singularidade e a segunda foi quando morreram fisicamente. Para Hanna Arendt, contra a morte só há um remédio: encarar a morte da insignificância, nem que isso custe a vida.

Com essas teses, a autora antecipa o pensamento do século XXI, no qual, por exemplo, percebemos a banalidade da violência em nosso dia-a-dia, a começar pelos jogos de guerra on-line e pelas notícias diárias de crimes apresentados de maneira sensacionalista na televisão e no rádio.

Vivendo corajosamente uma vida destemida, sem se basear opinião pública a seu respeito, a autora aproxima-se da psicanálise lacaniana. Essa aproximação se dá ao pensarmos que, em uma análise, o que cada um trabalha, à sua maneira, é a saída da prisão formada pela chatice da queixa e a busca de satisfação imediata de demandas. A psicanálise coloca em xeque a obediência cega ao que a sociedade prega ser adequado e correto. Last but not least, o final de análise é chegar a uma vida relevante, criativa, plena e destemida. Se a mulher homenageada pelo filme de Margarethe von Trotta fez psicanálise, não consta em sua biografia. Mas, certamente, viveu uma vida, como colocado por Lacan em seus últimos textos, “desabonada do inconsciente”. Eis aí uma vida que vale a pena ser vista nas telas do cinema.

Dorothee Rüdiger é psicanalista, doutora em Direito pela Universidade de São Paulo