Hamilton: a ética do estilo

HAMILTON: A ÉTICA DO ESTILO 10/09/2020

Letícia Genesini

“Onde não tinha nada, 
Van Gogh viu girassóis que 
agora nós também vemos.”1 
Jorge Forbes 
 
“Aquilo que herdaste de teus pais, 
conquista-o para fazê-lo teu.”
Goethe 
 

Há poucos anos, Lin-Manuel Miranda era um nome desconhecido do grande público — até que ele resolveu reescrever a história. Tendo assinado o libreto, a música e as letras de Hamilton, além de interpretado o papel principal, ele não só criou um dos musicais mais lucrativos da história, com a insólita (e maravilhosa) ideia de levar o hip hop para os palcos da Broadway, mas criou para si uma obra. 

Pode parecer um disparate fazer a montagem de um drama histórico, entre babados e perucas, através de uma metralhadora de rimas e ritmos. Para quem assiste, porém, não restam dúvidas: em Hamilton todo lance de coragem encontra seu ponto de sustentação. 

Ao ler a biografia de Alexander Hamilton, o primeiro Secretário do Tesouro dos Estados Unidos, escrita por Ron Chernow, Lin-Manuel se deparou com uma surpresa quase inverossímil, se não se tratasse da História: o rosto na nota de 10 dólares, um dos founding fathers americanos, era um imigrante. O homem que lutou na guerra de independência do país, como braço direito do General George Washington, que defendeu a constituição americana, que criou seu sistema financeiro vigente até hoje, e que fez os Estados Unidos seu projeto de vida, não nasceu no solo que constituiria depois sua nação. Em Hamilton, o fato que, como uma peça da incongruência, ficou para fora dos livros de história, agora pode ganhar uma narrativa. 

Se as coisas, de fato, não são o que parecem, onde deve restar a fidelidade da representação do fato? À qual matriz nos curvamos: à verdade ou à narrativa? Se a verdade ficou mais estranha que a ficção, mais vale o argumento do que a dita realidade. Foi o que fez Lin-Manuel: colocou a peça sem encaixe, antes à margem, no centro e seguiu o fio de seu discurso. A partir dela, os revolucionários passam a ser encenados por um elenco negro e miscigenado, inclusive o Marquês de Lafayette. As rimas rápidas do hip hop viram a linguagem progressista dos visionários, que dão cor a um mundo jovem em transformação. O rap também é a arma do mais versado, a marca da inteligência em discursos e debates nas ruas, no congresso e na corte. A agilidade da rima é a agilidade do pensamento, de construção ideias, daquele que sabe por a palavra a seu serviço.

Hamilton é uma história que se constrói na palavra, a começar por seu protagonista. Aquele que seria o Secretário do Tesouro Americano não era um aristocrata, não possuía terras ou títulos. Mesmo tendo liderado o exército de independência, não era um militar. Em um mundo de claras marcas e padrões sociais, Hamilton se faz pela narrativa. Suas cartas de amor lhe conquistam a dama, seus discursos apaixonados o levam à liderança do movimento de independência. Como braço direito de George Washington ele em cartas convence o congresso colonial americano a apoiar os rebeldes. Acabada a guerra, argumentará nas cortes como advogado, defenderá a constituição americana, e passará o resto de seus dias debatendo obstinadamente seus pontos de vista. Com a palavra Hamilton faz seu traçado no mundo. 

Incansável é a sua marca. “How do you write like you’re running out of time? (…) How do you write like you need it to survive?” 2 canta a peça indagando o que move esse homem, já apontando uma resposta que não exclui, mas também não se encerra na simples ambição. A escada social e o jogo político entram em cena, mas há algo a mais— algo aliás, que distingue Hamilton de seu antagonista, Aaron Burr. Não se trata apenas da força motor do aplauso, e sim de um moto-contínuo que atravessa a possibilidade de reconhecimento para chegar ao que não possui paralelos: o desejo de criação. Hamilton não é a história banal da auto-superação, é a história da insatisfação.  

Órfão, sem pais ou país, e sem um legado atrás de si para carregar, seu nome apontava não para uma definição feita, mas para o que ainda estava em aberto, aquilo que ele ainda haveria de fazer. Ao perguntarem como se chama, responde: My name is Alexander Hamilton. / And there’s a million things I haven’t done.3 Nós que estamos do outro lado da história sabemos o que virá, o que não tira em nada a emoção de ver a peça ser narrada. Pelo contrário, vemos com ele a imagem de algo que ainda não existe no mundo, mas que ele incansavelmente dedicará, na ânsia do curto espaço de tempo da vida humana, a construir. 

Indissociável da história de Alexander Hamilton está a história dos Estados Unidos. A nação americana foi seu projeto de vida, um projeto que não foi de um homem só, mas que nasce da vontade humana. Ao buscar sua origem em Hamiltonassistimos a um tempo quando o mundo que hoje nos é fato dado, não havia ainda sido criado. Antes do desejo, era o nada.

Uma narrativa originária absolutamente nova para um país que construiu sua identidade sobre grandes certezas. O nascimento dos Estados Unidos sempre foi contado através de grandes mitos de fundação, incontestáveis e com direito a certificado de paternidade. Até 4 de seus presidentes viraram rochas, não esculpidos em pedra de mármore qualquer, mas em montanha, tal qual obra da natureza, ou promessa divina. Já em Hamilton vemos um mundo povoado pela instabilidade, pelo risco e pelo entusiasmo humano. Um mundo que se ergue não por predestinação, mas pelo puro lance da vontade. 
 
Sabemos: um drama de época diz mais sobre o momento de sua releitura, do que da Era em cena. O mundo variável, instável, e criativo narrado na peça diz muito mais de hoje, do que da guerra de independência americana. Esse novo mundo, porém, nem sempre é recebido com entusiasmo. Nessa pós-modernidade, em TerraDois, como nomeia Jorge Forbes, em que nossas certezas são abaladas, vemos no mundo todo, mas principalmente nos Estados Unidos, um medo congelante frente ao que é perdido com a nova Era. Frente às incertezas vemos um governo conservador que procura a todo custo reconstruir o monolito da sua identidade: “A América é para os americanos”, diz Trump e seus apoiadores. Ao olhar para a história, porém, Hamilton não resgata uma resposta, e sim reinstaura a dúvida incessante: o que é a América? O que são os Americanos?

Na peça, após vencida a guerra de independência, Hamilton diz a seu antagonista: we studied and we fought and we killed / For the notion of a nation we now get to build4. A frase que carrega o fim do primeiro ato traz a chave da obra: a nação, a política, o país, são filhos de uma ideia; ideia essa que para existir não basta ser herdada, deve ser posta e sustentada no mundo. Com Hamilton, Lin-Manuel faz mais do que resgatar a história, contrapô-la com seu próprio tempo, ou criticar o status quo. Ele dá a seu país uma oportunidade, um chamado de entusiasmo, uma clave para pensar a si mesmo afirmando que, se foram rompidas as certezas identitárias, ainda sim é possível agir. É uma obra, que mostra não só para os movimentos reacionários, mas também para a sua oposição, o valor da incerteza. Que onde se abre uma fenda, pode o homem criar mundos no mundo.

Lin-Manuel viu em Hamilton um Estados Unidos, e nos chamou a ver também. Que fomos todos fisgados por seu lance do desejo é inegável, resta agora saber o que cada um fará com ele. 


[1] “Onde não tinha nada, Van Gogh viu girassóis que agora nós também vemos. Ele inventou seus girassóis e se responsabilizou por incluí-los nesse mundo. A cada um de nós também cabe inventar sobre o silêncio e se responsabilizar por sua criação, embora dificilmente com o mesmo talento, infelizmente. A psicanálise deve nos propiciar o duplo gesto de inventar e se responsabilizar. O talento é outro assunto.” Jorge Forbes em “GIRASSÓIS – Clinicando as Psicoses”.

[2] Como você escreve como se seu tempo estivesse se esgotando? (…) Como você escreve como se você precisasse disso para sobreviver?

[3] Meu nome é Alexander Hamilton. / e há milhões de coisas que eu ainda não fiz.

[4] Nós estudamos, lutamos e matamos, pela noção de uma nação que agora temos a oportunidade de construir.