Geni somos todos nós – entrevista de Jorge Forbes para a revista VEJA 18/06/2014

Os preparativos para a Copa do Mundo trouxeram à tona um modo bem brasileiro de lidar com os próprios problemas: atribuí-los a terceiros. Jorge Forbes, em longa entrevista – três encontros em seu consultório – conversou com a reportagem de VEJA sobre as transformações do papel de governantes, da polícia e até dos sentimentos num mundo globalizado em que ainda nos debatemos para tentar compreender (*)

Há uma sucessão de greves e protestos em várias cidades brasileiras. Ao mesmo tempo, crimes bárbaros tornaram-se mais frequentes. O que está havendo?
O sistema inteiro está doente, berrando e produzindo excrescências. Sejam os casos horrorosos de linchamento ou greves feitas ao deus-dará, em que há o minigrupo, o subgrupo, o contra grupo, sem nenhum tipo de legitimidade dentro das normas estabelecidas pela sociedade civil e que param cidades na maior tranquilidade. Nossa vida virou um bingo. Saímos de manhã e não sabemos se seremos escolhidos. Estamos num momento em que as pessoas estão indiferentes. Quando uma pessoa quer roubar um celular e para isso decide matar sua vítima, não mata por raiva, mas por indiferença. Não há mais uma competição entre o bandido e o não bandido, não existe mais essa divisão. O que existem são mundos que não se tocam, mundos à parte, mundos que o futebol não une mais. Nem o apelo da Copa do Mundo está funcionando. Sob a ditadura, o povo brasileiro uniu-se em torno do futebol, mas agora, sob um governo democrático, não se une.

Estamos em crise?
Sem dúvida. Sigmund Freud [1856-1939] dizia que um analista não deve atender pessoas em crise, porque na crise não é possível analisar ninguém, mas apenas remediar, no sentido de tapar buracos. Só que quando todos os dias surgem novos fatores de crise, há a premência de uma resposta imediata. Não será possível evitar medidas do tipo tapa-buracos, mas o governo tem de adequar-se e ser muito mais rápido, flexível e enérgico nas suas intervenções. Os líderes brasileiros hoje são todos de um tempo ultrapassado. Lideranças atuais devem tocar na vergonha de cada um, não no orgulho. Na vergonha de dizer “eu sou brasileiro e este outro brasileiro linchou esta mulher”, para lembrar o recente caso do linchamento daquela moça no Guarujá, entre tantos outros crimes horrendos que ocorrem. Hoje, o líder tem de fazer com que cada um se engate nas suas escolhas, e não que todos escolham a mesma coisa. Falta uma liderança capaz de tocar na vergonha de cada um, e não no orgulho. Se não nos envergonharmos, continuaremos dizendo “não sou eu, é o outro”. Comumente afirmamos que aquele brasileiro que faz coisas horrorosas, que estoura prazo, que não é simpático é o outro, e nunca nós mesmos. Temos de, por exemplo, parar com essa brincadeira de dizer “Imagine na Copa”. Imagine quem? O brasileiro continua numa posição externa ao seu próprio país e à sua gente. É uma separação irresponsável. Temos de lançar o movimento do “Eu sim”. Senão vai haver um seccionamento cada vez maior da sociedade e daqui a pouco seremos 200 milhões de grupos do eu sozinho. Por que essa coisa do Brasil Geni? O brasileiro faz do país sua Geni e com isso fica sem cidadania. Geni somos todos nós.

Nesse cenário, que papel cabe aos governantes?
Os países costumavam ser liderados por grandes homens, De Gaulle, Churchill, Getúlio Vargas. Eram grandes personagens, que concentravam neles a representação do país. Quando Charles de Gaulle morreu, ficou célebre a frase “A França ficou viúva”. Diga-me se hoje a França poderia ficar viúva do François Hollande. Se amanhã Barack Obama morrer, não será possível dizer que a América ficou viúva — mas com Keneddy era possível. Hoje, pode até haver a pessoa, mas não há o trono para ela ocupar. Então acho que os líderes atuais deveriam primeiro parar de consultar o marqueteiro que os elegeu, mas que não os mantêm no poder. O marketing da eleição é uma esperança, o do governo é uma presença. Uma coisa é esperar a viagem e a outra é estar na viagem. Ninguém viaja pensando na próxima viagem. Precisamos de um governo já, estamos sem governo. É preciso mudar. Não estou dizendo depor, estou dizendo mudar. O governo de um país moderno não governa um país que é pós-moderno.

Quem o senhor apontaria como exemplo de liderança?
Vou citar alguém que não vejo como um modelo propriamente, mas como um novo tipo de líder, que é o presidente do Uruguai José Mujica. Sua postura leva cada cidadão a se perguntar sobre qual sua cota de responsabilidade no laço social. Independentemente da minha apreciação ou não da sua política, é uma nova forma de liderança.

E qual a função da polícia nesse contexto de crise?
A população espera da polícia algo que ela não pode dar. Pedimos a proteção policial e, quando ela entra em cena, é criticada pela forma como nos protege. Nem nossos pais conseguiram nos proteger completamente, por que a polícia conseguiria? Se insistirmos nas coisas como estão, a população vai continuar sendo infantilizada, e a polícia massacrada. A proteção do homem não pode ser feita externamente. Essa obrigação tem que ser dada a cada um. O Bope e a Rota [polícias de elite do Rio e de São Paulo, respectivamente] reiteram a figura arcaica do pai protetor, aquele que vai resolver no meu lugar. Não vai. Não há contingente policial que vá dá conta da barbárie atual.

Há uma sensação de complexidade crescente. Como a psicanálise explica isso?
Cunhei um termo para explicar isso, que é o homem desbussolado, ou seja, sem norte. Vivemos a pós-modernidade, que é muito diferente da modernidade. Antes havia uma sociedade piramidal. Na família, as pessoas se orientavam pelo pai. Nas empresas, pelo chefe. Na sociedade civil, pela pátria. Esses três elementos foram deslocados na passagem dessas duas eras, que é marcada pela globalização. O pai não representa mais o caminho disciplinar a ser seguido. Nas empresas, há líderes de projeto que se alternam conforme a tarefa. Na sociedade civil, os mercados comuns sacudiram a noção de pátria. Saímos do vertical e entramos num mundo horizontal, em rede. Isso está acontecendo no mundo todo. O curioso é que, entre os povos ocidentais, quem melhor tem suportado essa transição é o brasileiro.

Por quê?
Sérgio Buarque de Holanda já dizia que a raiz do Brasil é a cordialidade. Nós damos crédito à amizade, por exemplo. Até para brigar. No Brasil, você só briga com os seus amigos, senão fica indiferente. E o grande afeto do mundo horizontal é a amizade. Nós não tememos a exposição nas redes sociais, não achamos que porque alguém sabe quem são meus pais eu vou ter minha intimidade invadida e me sentir péssimo. O brasileiro não se sente péssimo, ele acha graça. Sabe que mesmo que o outro saiba tudo isso sobre ele, na verdade não sabe nada dele. Ele pode se deixar viver a pós-modernidade mais facilmente.

Como fica a cordialidade quando há tantos crimes horrendos ocorrendo no país?
Ser cordial não é ser bonzinho. É não ser formal. Pense no uso que fazemos dos diminutivos: “Se eu me atrasar um pouquinho, você vai tomando um chopinho e comendo alguma coisinha ou então você me dá uma ligadinha” (risos). É a maneira de fazer tudo mais acessível, menor, próximo, uma vida que caiba na palma da mão. O que eu quero extrair dessa cordialidade não é a marcação que se faz de que somos legais, e sim dizer que este é o cimento do laço social brasileiro. Até mesmo a facção criminosa PCC é cordial. É uma fratria. Experimente trair os princípios dessa fratria.

Quanto aos crimes, são ações de pessoas doentes?
Esses fatos todos mostram que o ser humano é muito perigoso. Somos muito esquisitos e muito perigosos a nós mesmos. Não há mais explicações de causa e efeito. Mas já devíamos saber disso, afinal o filósofo Friedrich Nietzsche [1844-1900] explicou isso em 1870. Freud acompanhou esse pensamento, mas em dado momento pôs o pé no freio. O psicanalista Jacques Lacan [1901-1981] acelerou-o, dizendo que o real teria uma posição de supremacia sobre o simbólico imaginário. Bom, estamos nesse momento. E o real não é exatamente a realidade, mas aquilo que não tem nome nem nunca terá. O futuro não é uma projeção do presente, como foi para as gerações anteriores, o futuro é uma invenção do presente. Houve uma flexibilização da disciplina de modo geral e ainda não há uma resposta àquilo que foi desmontado. Só que, motivados pela angústia de não saber o que fazer, utilizamos respostas que não servem mais. E o problema continua e estoura de maneiras assustadoras: meninas que cortam os braços, pais que matam os filhos, filhos que matam os pais, sempre nessa característica de curto-circuito, como se fossem atos cometidos durante ataques epiléticos. Nesse sentido, todo mundo precisa saber que é epilético. Em vez de dizer “você é e eu não sou”, saiba que você também é e todos nós somos. E, portanto, todos deveriam se precaver porque também são capazes de fazer. As ameaças têm de ser tratadas de maneira mais séria. Se em vez de tentarmos descobrir qual a doença que levou fulano a fazer tal coisa pensarmos que não há uma doença que explique aquilo, as pessoas aumentarão sua responsabilidade frente a todas as coisas.

Mas as pessoas parecem seguir o caminho oposto, de tentar desvencilhar-se cada vez mais das responsabilidades.
Sim, das responsabilidades padronizadas, da norma e do código. Mas há um tipo de responsabilidade da qual ninguém escapa. Veja o amor, que passou por uma mudança muito grande. Antes, o amor era intermediado: estou com você porque prometi na igreja, ou prometi para o seu pai, ou por causa dos nossos filhos, enfim, sempre uma terceira razão. O que existe hoje é um amor direto: estou com você porque eu quero estar com você. Esse novo amor, não explicado, direto, é o principal elemento que vai legitimar um novo laço social que vai levar a modificações importantes tais como racismo. A nova geração é muito mais responsável nesse sentido do que as anteriores — embora as anteriores fossem muito mais responsáveis sob o ponto de vista do cumprimento das normas. A questão é que as pessoas precisam ter uma responsabilidade maior frente ao seu desejo. Na medida em que diminuímos a expectativa de explicar o amor, aumentamos a responsabilidade frente a esse sentimento. É um novo amor. A globalização chegou, criou uma bagunça monumental e estamos correndo atrás para tentar ocupar esse novo mundo. Isso significa rever todos os nossos critérios: de amor, de educação, de justiça. Não se trata de reformar o Judiciário, e sim de reinventá-lo. A psicanálise foi reinventada.

Como assim?
Antigamente, o paciente vinha se tratar para tentar saber mais de si, para ter uma ação mais garantida, fazer menos besteiras. Só que a subjetividade da pós-modernidade é diferente. Hoje, eu tenho de dar condições ao meu analisando para que ele tome decisões baseadas no não saber, e não na expectativa de saber mais. Vou mexer no botão da angústia e transformar a angústia paralisante em angústia criativa, como se transformasse o colesterol ruim em bom. Mas a angústia não deixa de existir.

O senhor diz que o mundo olha para o brasileiro como modelo de pós-modernidade. O que temos para mostrar?
Todos estão apavorados, numa sensação de salve-se quem puder. Pais me procuram dizendo que não entendem seus filhos, pessoas de cinquenta anos sofrem revezes profissionais e não sabem mais o que fazer, casais querem ter filhos, mas não sabem quando nem como… E o brasileiro é alguém que historicamente sabe conviver com a variação de padrão. O tal do jeitinho significa que por meio da amizade é possível encontrar uma outra forma de fazer as coisas. Isso era malvisto até pouco tempo atrás, mas hoje tornou-se fundamental. Suponha que você trabalhe em uma empresa e fique sabendo de uma vaga. Há dez anos você diria: “Olha, conheço um cara incrível para essa vaga e estou falando isso não é porque ele é meu amigo”. Hoje você diz: “E além de tudo o cara é meu amigo”. A amizade virou uma chancela.

Isso quer dizer que a meritocracia ficou em segundo plano?
Não exatamente. O mérito é o óbvio, é genérico. A amizade é um algo a mais que só o afeto dá. Entre duas pessoas de nota oito, eu vou contratar o amigo do fulano. E o cara que contratou o seu amigo sabe que você será a primeira a falar caso ele pise na bola. Sabe aquela coisa “Vê se te manca, eu te trouxe nesta festa, não vá tomar porre”? Isso conta muito.

As pessoas se vigiam umas às outras?
Não, as pessoas não se vigiam, elas se necessitam. Vigiar é seguir um conjunto de normas do que é certo e do que é errado, algo de uma sociedade moralista. O que eu entendo é que temos necessidade uns dos outros porque o ser humano se inventa a partir do contato com o outro. “Eu necessito do outro para saber de mim”. Por exemplo, antes mesmo de nascermos, nossos pais já haviam formado uma imagem a nosso respeito. Quando crescemos um pouco, tornamo-nos escravos da expectativa do outro, que tem origem nessa expectativa de nossos pais. Será que fui bem? Será que deu certo? Será que estou legal? Você me ama? Cheguei na hora certa? Não estou incomodando? Você está bem? São infinitas formas que nós temos de saber se estamos correspondendo ao que foi esperado de nós. O problema é que a gente nunca corresponde, e não só porque não sabemos corresponder, mas também porque aquele que espera algo da gente também não sabe bem o que quer. No processo de análise, descobre-se que o outro de quem você ficou escravo tentando dar uma resposta não sabe de você. Isso significa que você não pode mais pedir desculpas e, portanto, tem de se responsabilizar pelos seus atos.

Isso deve ser libertador.
Não é. Porque no dia em que você descobre isso, percebe que está sozinho. Quando a gente descobre que o outro não sabe nada a nosso respeito, não podemos mais pedir desculpas. Temos, portanto, de nos responsabilizar por nossos atos, não estamos mais em função do outro. Há um paradoxo que ilustra isso. Quando alguém que eu amo está longe, então não me falta nada, porque eu preencho o que falta com a fantasia. Por isso os homens se fascinam com o olhar feminino vago. Ele permite que exista um encontro com aquilo que lhes falta. Por outro lado, quando estamos junto de quem amamos é quando mais notamos esse algo que nos falta. E sempre irá faltar. É o que Roberto Carlos canta em Outra Vez: “Você é a saudade que eu gosto de ter”.

(*) Entrevista – por Mariana Barros – publicada no site da Revista VEJA em 11/06/2014

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