Fora dos trilhos 09/01/2014

Por Dorothee Rüdiger

Para sair da vidinha em 2014, vale a pena conhecer Walter Mitty

Vale conhecer Walter Mitty, o sujeito neurótico cuja existência se resume ao trabalho burocrático no arquivo da revista Life e ao pagamento de dívidas. Para que se tenha uma ideia de sua neurose, o cúmulo da ousadia de Walter resume-se a dar uma piscadinha para a mulher amada na rede social, que promete facilitar-lhe o encontro amoroso.

Criado e representado por Ben Stiller, o herói do filme A vida secreta de Walter Mitty que, a julgar pela publicidade, promete ser somente mais um daqueles blockbusters a estrear nas festas do final do ano, leva uma vidinha. Entrega-se aos devaneios que transformam o homem pálido e inibido num herói capaz de conquistar com suas façanhas a dama do seu coração. Fora do estado onírico em que vira e mexe se encontra, tem vergonha de lhe dirigir a palavra.

Assim, tudo vai mal, até que Walter é agraciado por um presente que lhe é enviado por um fotógrafo aventureiro, uma espécie de mentor. No entanto, falta algo no pacote, um misterioso objeto, que, ao que parece, está escondido em algum lugar do mundo. É preciso que Walter se precipite, que aposte, que saia da vida medíocre e se aventure para buscar esse “objeto causa do desejo”, para lembrarmos Jacques Lacan.

A conquista de uma vida qualificada, para usar um termo de Giorgio Agamben, é também a aposta de quem decide realizar uma psicanálise. Quem dela espera mais qualidade de vida, harmonia no amor e o conforto e a tranquilidade no cotidiano, não vai, como o herói do filme, ser bem servido. Vida mais confortável é permanecer entregue às fantasias oníricas, marca registrada dos neuróticos, como Sigmund Freud descobriu. O neurótico, aliás tão bem caraterizado por Stiller, vive no passado e tem medo de conquistar o que, no fundo, já lhe pertence.

Mas, Walter Mitty tem uma chance quando resolve partir em busca do misterioso objeto que já é seu. Seu mentor, o fotógrafo, feito psicanalista, não lhe facilita a busca. Assim, quando parece haver um desfecho da aventura, abrem-se novos horizontes. É preciso encontrar a vida fora dos trilhos e das trilhas, delirar. Feito um analisando, ao invés de sonhar, Walter Mitty tem a chance inventar sua estória.

Assim, é de horizonte em horizonte que Walter Mitty transforma sua vida e das pessoas que lhe são próximas. Ben Stiller mostra-nos, no cinema, que, como diz Jorge Forbes, a vida qualificada é não somente “a invenção de uma satisfação pessoal”, como também “a capacidade de passá-la ao mundo” de uma maneira responsável.

Dorothee Rüdiger é psicanalista e doutora em Direito pela Universidade de São Paulo