Por Claudia Riolfi
A vida é cheia de buracos
Flash 1
– O que aquele homem tem no olho? Era essa a pergunta insistente de um senhor de oitenta e quatro anos, hospitalizado, para sua filha caçula. O paciente que estava anteriormente no leito ao lado dele havia sido encaminhado à cirurgia e, na avaliação do senhor, o novo habitante tinha um olho muito estranho.
Como eles estavam em um andar dedicado aos pacientes com câncer, a moça tentava ser discreta. Respondia-lhe, com voz baixa: – Ele não tem nada no olho, pai. Segundo ela, a tentativa era, por meio da inflexão da voz, dar a entender, por meias palavras, o que ela queria responder.
Não satisfeito, o teimoso replicava. – Eu estou vendo daqui. O que ele tem no olho? Um pouco mais impaciente, a caçula tentou colocar ênfase no “nada”. – Então, pai, ele não tem nada. A pergunta foi feita pela terceira vez. Agora, desconfiando de que estava cometendo uma indiscrição, ele tentou ser carinhoso. – Tem sim, no olhinho esquerdo.
Perdendo a paciência e a compostura, ela esclareceu, em voz bem alta: – O que eu estou tentando dizer é que ele não tem olho, pai. Não tem, literalmente, nada no olho. E, ele, impassível: – Não sei porque você disfarçou tanto. É assim mesmo a vida, cheia de buracos.
Flash 2
Já incomodado com a manipulação dos médicos em seu corpo, ele começava a mostrar o que, talvez, fosse nomeado como “dificuldade de adesão aos tratamentos”. Não queria a comida do hospital, não queria mais tomar soro, não desejava que gente estranha o tocasse. A família estava alerta e ressabiada.
Quando a filha mais velha notou que a febre tinha lhe feito enormes rachaduras nos lábios, foi até a farmácia mais próxima arranjar cicatrizante e hidratante para os machucados. Ao voltar, encontrou-se com a caçula. Como o pai cochilava, ambas resolveram que era melhor aproveitar para, de leve, aplicar os dois produtos.
No meio da aplicação do bastão de manteiga de cacau, ele acordou. – O que é isso?, perguntou, entre curioso e assustado. Brincando, a caçula respondeu: – Batom cor de rosa. Sua filha mais velha é louca.
Ele calou por uns instantes, como se esperasse pela sensação nos lábios antes de responder. Constatando o alívio, virou-se para sua filha mais velha e pediu, muito sério:
– Por favor, deixe o batom cor de rosa ao lado da minha cama. Eu sempre tive um sonho de me fantasiar de Drag Queen antes de morrer. Só certifique-se de ensinar a sua irmã como se faz essa maquiagem mágica antes de voltar para sua casa.
Flash 3
Tendo tido alta, ele estava em casa. Não fosse ter perdido um de seus filhos naquele mesmo dia, estaria feliz. Encomendou o cardápio, pediu que fosse aberto um vinho, entreteve os visitantes discutindo política internacional. Mais tarde, convidou a filha mais velha para assistir a um programa de moda feminina na televisão. Ela estranhou, mas não disse nada. Aceitou. Desde quando seu pai tinha interesse por esse tipo de coisa?
Não demorou um minuto e a estratégia ficou clara: tratava-se de um modo de diverti-la, já que, a cada modelo ou modelito, ele tinha uma crítica mais mordaz do que a outra. Nenhum detalhe anatômico ou estético foi poupado. Riram como crianças. Entrevendo que o fim se aproximava, ela se deixava ficar. Não durou muito.
– Está na hora de você ir ver se seus filhos estão bem em São Paulo.
– Estão ótimos, já são muito independentes.
– Não estou insultando você. Disso não tenho a menor dúvida.
– Então por que se preocupa?
– Por que nem você, que é tão inteligente, pode prever toda maldade do mundo. Eles são lindos. E se alguém nota que estão sozinhos e quer se aproveitar da ocasião?
– Oi?
– Nem você nem eu vamos fingir que pedófilos não existem. Nem pedófilos nem a morte. Eu sei que você está se alongando aqui, mas agora vá.
Ela foi. Três dias depois, voltou para enterrar o pai. Esses flashes tinham sido suas últimas lições: não se foge da vida, nem tampouco, do inominável da morte. O buraco, o fim da fruição da diferença sexual, a última partida não são coisas para serem evitadas. Seu enfrentamento, inclusive, é condição para o amor.
Claudia Riolfi é Professora Livre-docente da Universidade de São Paulo. Cursou pós-doutorado em Linguística na Université Paris 8 Vincennes-Saint-Denis. Psicanalista, é Diretora Geral do IPLA.