Faites vos jeux! Que façam as apostas! 23/10/2014

Por Dorothee Rüdiger

A globalização coloca-nos quase que diariamente diante de contingências, isto é, diante da necessidade de resolver questões para as quais as normas jurídicas e as políticas tradicionais não estão preparadas

Mais uma campanha eleitoral está chegando ao fim. De todas as campanhas que ocorreram nas últimas décadas, esta foi uma das mais angustiantes, tamanho o desentendimento que tem provocado. Havia amigos “cortando” uns aos outros da rede social, porque um deu um “like” para a campanha política de um partido para o qual o outro manifestava um profundo “deslike”. Pessoas que costumam ser elegantes perderam a noção no calor da campanha. Por toda parte chegaram relatos de intelectuais, executivos e artistas “se pegando” por apoiarem candidatos diferentes. Irmãos, primos e primas, tias e sobrinhos, enfim, pessoas de uma mesma família juraram nunca mais se falar, porque um chamou o outro de “débil mental”, “alienado”, “burro” e coisas do gênero no calor do debate político no churrasco de domingo. O Brasil sai dessa campanha politicamente rachado entre os que apoiam Dilma ou Aécio, “petistas” ou “tucanos”. Qualquer presidente ou presidenta que se eleja que se cuide! Vai enfrentar uma oposição do cão.

“Petistas” e “tucanos”, no Brasil, reproduzem a política “bipolar” presente em muitos lugares do mundo desde a modernidade. Os ingleses já conheciam, no século 17, a divisão entre Tories e Whigs, os conservadores e os liberais. Até hoje, os britânicos dividem-se na política entre os adeptos do Conservative Party e do Labour Party. Na Alemanha, Sozialdemokraten e Christdemokraten digladiam-se desde que surgiram, no século 19. E não dá para deixar de lembrar que nos Estados Unidos as campanhas eleitorais costumam rachar a população do país entre eleitores dos Republicanos e Democratas.

Para quem observa o presente jogo político como estrangeira residente que, embora solidária, não participa dele diretamente, a campanha eleitoral no Brasil evidencia que aqui, como alhures, nossa maneira de fazer política está obsoleta diante dos desafios que a sociedade globalizada, hoje, enfrenta. A globalização coloca-nos quase que diariamente diante de contingências, isto é, diante da necessidade de resolver questões para as quais as normas jurídicas e as políticas tradicionais não estão preparadas. “O Real é sem lei,” dizia Jacques Lacan. O mundo globalizado prepara-nos desafios para os quais não existem receitas prontas. Como aprendemos com Jorge Forbes, as incertezas que a globalização provoca faz com que normas, planos, estratégias políticas e as tradicionais formas de nos organizarmos em partidos políticos falhem. Consequentemente, a polarização na ocasião das eleições faz cada vez menos sentido.

Sendo cidadãos do mundo, estamos diante de questões a serem resolvidas em escala global e independentemente da orientação política dos partidos no poder. O vírus da Ebola está matando milhares de pessoas na África e está ameaçando se espalhar. Quem quer saber se o médico que trata o paciente acometido pela Ebola é socialista ou republicano? Diante da falta de chuvas em São Paulo, estamos sofrendo na pele as consequências das mudanças climáticas que estão ocorrendo no mundo. Precisamos de Christdemokraten para inventar e implantar novas técnicas de reflorestamento? Ou será marca registrada dos Sozialdemokraten criar parques e jardins suspensos nos grandes centros urbanos? Entre os Democratas e os Republicanos, quem terá ideias inusitadas para resolver o problema do aquecimento global?

Embora com meios para organizar movimentos políticos literalmente na palma da mão, ainda transferimos a responsabilidade para a solução de questões políticas que nos afligem ao Estado e aos partidos políticos. É mais prático do que encarar a criação de novas formas de agir politicamente. Sendo assim, no Brasil, os cidadãos não podem prescindir de escolher os governantes.

Faites vos jeux! Que façam suas apostas! Que depositem seus votos nas urnas! Mas que arquem também com as consequências que, por hora, ninguém é capaz de sequer imaginar.

Dorothee Rüdiger é psicanalista e doutora em Direito pela Universidade de São Paulo