O Mundo visto pela Psicanálise entrevista Elisa Padovan sobre sua experiência no Hospital Psiquiátrico Guido Salvini, na Itália, e no que isso contribuiu para sua formação de psiquiatra
O Mundo – Qual sua formação?
EP – Me formei médica pela Faculdade de Medicina de Santo Amaro e atualmente estou no último ano de psiquiatra pelo Hospital do Servidor Público Estadual.
A ideia de fazer um estágio no exterior sempre esteve presente, porém não conhecia algum serviço que permitisse esse intercâmbio. Um dia, ao acaso, lendo sobre a psiquiatria italiana, encontrei o nome da Dra. Maria Teresa Ferla, e descobri que ela era diretora do serviço de psiquiatria do Hospital Guido Salvini, em Garbanhate Milanese – Itália. Entrei em contato com ela que, desde o início, foi bastante receptiva, permitindo que eu realizasse o estágio em seu serviço. O Mundo – O que motivou você para essa pesquisa clínica, nesse estágio no hospital Guido Salvini, na Itália?
EP – A curiosidade de viver uma experiência na minha área de trabalho, porém sobre a influência de outra cultura. A meu ver, a psiquiatria é uma das áreas dentro da medicina que não depende apenas do domínio de conceitos, isso, claro, é importante, porém conhecer outros modos de pensar um diagnóstico, estar em contato com pacientes de outro país me despertou grande interesse e a sensação de que isso poderia acrescentar um algo a mais na prática clínica. O Mundo – O que você destaca do trabalho desenvolvido nesse hospital?
EP – Acredito que a estrutura oferecida pelo governo à psiquiatria chama atenção. Há um grande investimento para que a atenção ao doente se baseie nas redes de atenção psicossocial, trabalhando na prevenção de quadros graves e na manutenção do tratamento após a alta. Outro ponto interessante é a funcionalidade da equipe multidisciplinar. O médico, de fato, não trabalha sozinho, cada profissional da equipe avalia o paciente de acordo com a sua especialidade para propor estratégias terapêuticas específicas. Cada miniequipe, além do psiquiatra, conta necessariamente com um: psicólogo, assistente social, enfermeiro, terapeuta ocupacional e educador. O Mundo – A reforma psiquiátrica realizada na Itália se reflete atualmente nesse trabalho?
EP – Acredito que sim. Nesse serviço que observei, eles não compartilham com algumas das ideias mais rígidas da reforma psiquiátrica. Entretanto, prezam pelo bem-estar do paciente e, por isso, trabalham com a ideia de que a internação deve ocorrer apenas para o controle do quadro psiquiátrico. Como dispõem de uma boa equipe multidisciplinar e locais adequados para encaminhar o paciente na continuidade de seu tratamento, de fato, conseguem reduzir o tempo de internação e prevenir grande parte das recaídas. O Mundo – Nesse hospital, qual é o diferencial dos tratamentos propostos na área da saúde mental?
EP – Além da estrutura psicossocial, chama a atenção a forma de elaborar o diagnóstico. Ao contrário do que imaginava encontrar, pude perceber que eles não se baseiam apenas nos códigos oficiais de classificação diagnostica – CID10 e DSM V. Nos tempos atuais, encontrar psiquiatras que trabalham na contramão dos códigos é algo em extinção e, por isso, foi uma boa surpresa para todos nós perceber que compartilhávamos da mesma ideia. O Mundo – Que outros critérios são utilizados pelos psiquiatras ao fazer o diagnóstico?
EP – Na verdade, não seriam outros critérios e sim ferramentas alternativas que podemos utilizar durante a elaboração de uma hipótese de trabalho. O serviço de psiquiatria do Servidor foi fundado pelo professor Dr. Carol Sonenreich que, de forma brilhante, trabalhou muito sobre o tema. Em poucas palavras, trata-se em não prender-se à forma modular de fazer diagnóstico baseado na soma de sintomas. Entende-se que separar elementos isolados para depois juntá-los na tentativa de unificar a conclusão diagnóstica não necessariamente leva o clínico a esse objetivo. Para Carol, em vez de “funções”, a proposta é falar sobre “qualidades de vivência” e construir os conceitos de mania, depressão e ansiedade, em função de outros parâmetros: a extensão do campo vivencial e a velocidade dos processos psíquicos. Tal proposta é lícita, já que se entende que afeto, humor, sentimento e emoção não como fatos, objetos significados, mas são como conceitos, significantes, sinais. Os conceitos afetam a realidade com a qual trabalhamos e é mais uma razão para não confundi-los com a própria realidade, formulá-los de maneira adequada com nossos objetivos; no caso da psiquiatria, evidentemente: o tratamento das alterações mentais.
O Mundo – Como você percebe a eficácia da psicanálise nos tratamentos psiquiátricos? Ela está presente nesse serviço por você visitado na Itália?
EP – Na minha visão, a psicanálise tem um grande efeito no tratamento psiquiátrico, uma vez que envolve o paciente no seu tratamento e tira do psiquiatra toda a responsabilidade de resolver a doença. Quando o paciente vai ao médico, ele espera que seu problema seja resolvido, todas as apostas estão sobre o saber médico. Quando aplicamos isso na psiquiatria, percebemos que nem sempre saber o que o paciente tem e oferecer a ele uma medicação resolve sua doença. É aí onde entra a psicanálise. Tem uma parte daquilo que ocorre com o doente que somente ele é capaz de dizer e por meio da análise encontrar uma possibilidade de fazer diferente. Nesse caso, nenhuma medicação conseguirá intervir. No serviço que acompanhei na Itália, conheci alguns psicólogos que trabalham com psicanálise, inclusive acompanhei uma pesquisa bastante interessante a respeito de intervenções psicanalíticas em pacientes com transtornos alimentares, anorexia e bulimia nervosa, patologias que pouco respondem às terapêuticas medicamentosas e que estavam evoluindo bem por meio do seguimento psicanalítico.
O Mundo – O que dessa experiência mais te tocou, mudou tua sensibilidade clínica e o que te inspira a continuar a conversa?
EP – Acredito que pude crescer mais como psiquiatra. Fui tocada pela simplicidade de conviver algumas divergências e a satisfação de encontrar também concordâncias. Perceber que não existia a necessidade de provar o certo ou o errado, o melhor ou o pior, mas havia uma vontade comum a todos nós: trocar experiências. Isso motiva a continuidade da conversa, porque as experiências nunca se esgotam e a possibilidade de poder compartilhá-las será sempre bem-vinda.
Elisa Padovan é médica, cursando o último ano de psiquiatra pelo Hospital do Servidor Público Estadual -SP.