“Existirmos: A que será que se destina?” 16/03/2023

Talyta Carvalho

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
[…]Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

Carlos Drummond de Andrade, Os ombros que suportam o mundo.

Na ocasião do I Congresso Brasileiro de Psicanálise, José Miguel Wisnik interpretou a música “Cajuína”, cujo verso dá título a esse texto, e foi aplaudido de pé pelos analistas ali presentes. O tema do congresso era, justamente, “Interpretação”. Wisnik interpretou a música, que interpretou os analistas. Quem conta esse episódio é Jorge Forbes em seu livro Da palavra ao gesto do analista. O relato é uma interpretação dessas interpretações, mas é também uma interpretação da questão existencial colocada poeticamente por Caetano Veloso. Valendo-se da canção e da cena do Congresso, a análise de Forbes parte de uma noção fundamental à psicanálise: a existência humana não comporta uma resposta determinada à pergunta do “para quê”. Com a clareza e a perspicácia que lhe são próprias, ele evidencia o que Jean-Paul Sartre expressava na máxima existencialista de que, no ser humano, a existência precede a essência. Ou seja, em nós, a essência não está definida desde o início, não é “item de fábrica da existência”, está mais para “item de série”. Daí Forbes afirmar que não existe resposta racional para a dúvida do poeta entregue na forma de um destino. Se não existe resposta, resta cantar, conclui ele. Dito de outro modo, o que há é criação. Esse trabalho de Jorge Forbes se insere em uma discussão sobre a questão do determinismo que é cara não somente à Psicanálise, mas também à Filosofia e ao Direito. É igualmente nesse contexto que se localiza a mais recente obra de Luc Ferry intitulada“La vie heureuse – Sagesses anciennes et spiritualité laïque” (Éditions de L’Observatoire, lançado em setembro de 2022. Ainda sem tradução no Brasil).

Ao se colocar no curso desse debate, Ferry articula os elementos já consagrados na história da filosofia com elementos novos, próprios de nosso tempo. Pensar a questão do determinismo através de elementos da própria tradição filosófica significa trazer para a discussão as noções de finitude, sentido da vida, felicidade, necessidade e liberdade. Adicionar à reflexão o que denominei como “elementos novos”, quer dizer incluir a questão da longevidade cientificamente possível bem como os seus desdobramentos nos diversos campos da experiência humana.

Novamente em afinidade com Jorge Forbes, o qual caracteriza nossa época como um tempo em que os impasses e angústias se dão justamente por podermos mais do que queremos, o livro de Ferry aborda o tema da longevidade a partir das diferentes respostas dadas pelas ideologias da felicidade e pela sua própria filosofia à pergunta: uma vez que é cientificamente possível, é também desejável? O primeiro capítulo apresenta o panorama histórico-filosófico a partir do qual as ideologias da felicidade fundamentaram suas fórmulas. Diante da angústia existencial colocada pela consciência da mortalidade, as sabedorias antigas ofertavam soluções variadas entre as quais vale destacar aquela cuja influência é a mais evidente nessas ideologias, a saber, o estoicismo. A proposta estoica consiste em convocar o homem a mudar seus desejos ao invés de tentar mudar a realidade, já que essa última é concebida como implacável. Esse “caldo” é engrossado pela adição do sistema metafísico dogmático de Spinoza e pela desconstrução nietzschiana que resulta no amor fati. Assim, a resignação é o traço comum que reúne essas filosofias às ideologias da felicidade. A realidade, tal como compreendida por esses sistemas, é caracterizada por um determinismo tão radical que a única felicidade possível se encontra na aceitação conformista das coisas serem o que elas são. Aqui nos trópicos, nós bem poderíamos batizar essa posição como a vertente “Gabriela” da filosofia.

Entretanto, nem só de conformados vive a história do pensamento humano. No capítulo dois, Luc Ferry nos convida a repensar nossa relação com o tempo e a finitude a partir do que ele denomina como “espiritualismo laico”, um novo tipo de altruísmo. Trata-se de uma proposta filosófica do próprio Ferry e se caracteriza por uma combinação de sínteses humanistas com o legado libertador das filosofias da desconstrução. Ao afirmarem que não há uma verdade única, essas últimas abrem espaço para a afirmação da liberdade como protagonista da experiência humana em franca oposição ao determinismo dogmático. Aqui, vemos a posição expressa por aqueles que, parafraseando Chico Buarque, querem ter voz ativa e em seu destino mandar.

Uma vez apresentadas as duas posições atuais frente à questão da longevidade, o terceiro e último capítulo passará a articular os seus respectivos embates. Ao defender o prolongamento da vida como desejável, o espiritualismo laico terá de responder não só às acusações de eugenia, mas também às indagações sobre o risco de crises demográficas e aumento de desigualdade social. Por outro lado, diante da possibilidade de desfrutar por mais tempo, e com boa saúde, de uma vida que se ama viver, caberá às ideologias da felicidade resignada responder melhor à pergunta “por que não?” O debate está aberto. A nós, na psicanálise, cabe participar e contribuir. Como? “Partir do desejo para multiplicar a própria vida em vez de ajustar os desejos limitando-os ao dado da vida”, afirmou Pierre Rey em seu Uma temporada com Lacan. É um bom começo.