Por Flávia Garcia
O sofrimento expresso nos sintomas de cada um dos personagens fica na inscrição do “mal-dito”
“…todos somos um e quem não tem pobreza de dinheiro tem pobreza de espírito ou
saudade por lhe faltar coisa mais preciosa que ouro – existe a quem falte o delicado essencial. “
Clarice Lispector – A Hora da Estrela.
Mommy é o sexto filme do jovem diretor Xavier Dolan, 25 anos, que ganhou o Prêmio júri no festival de Cannes 2014. O filme é original no tratamento de efeitos visuais e sonoros. A edição de imagem causa estranheza ao expectador. O diretor optou por fazer uma captura da imagem num formato quadrado (1:1). Tal recurso de estreitamento da imagem na tela reflete a parca perspectiva que se inscreve na vida dos personagens, nos planos fechados e abertos. Eis uma metáfora dos sentimentos conflituosos e perspectivas de saída que se vislumbram. Trata-se de um filme provocativo que convida à reflexão sobreos acidentes que estão presentes na relação mãe-filho e no quanto somos inaptos na lida com o amor e a morte.
O personagem central, Steve, é um adolescente de 15 anos que, após cometer delitos, vai para uma casa de custódia que o expulsa por mau comportamento e o encaminha novamente para a mãe. Die é uma mãe ausente frente às necessidades do filho. Ela sofre de uma falência amorosa contundente. Alcoólatra e subjetivamente desorientada, não consegue construir uma rota de vida para si e nem exercer uma função de lei diante do filho. Não consegue exercer na relação com seu filho a transmissão de um saber, de uma orientação frente às suas satisfações e escolhas. Furta-se e priva Steve de lidar com o vazio e consequente luto pela morte do pai. Sua destrutividade é a forma como edita, no seu cotidiano, o que da perda não ganha uma simbolização.
É Keyla, a vizinha esquisita, que vai possibilitar, ainda que temporariamente, uma ancoragem ao menino. A mulher barra os excessos de Steve e o implica em um desejo singular, a partir do qual ele pode imprimir, de forma construtiva, suas digitais no mundo. Ela compõe a cena familiar tropeçando nas palavras, com uma gagueira aparentemente traumática, que pode ser um sintoma diante morte de seu filho. Apesar da sua dificuldade de fala, consegue fazer com que o menino saia da posição de dejeto. Inscrevendo o silêncio radical, do ato que dá um basta às sínicas falas de Steve, ao gesto de ensinar o adolescente a se barbear, ela lhe dá um lugar, uma dimensão de alteridade, retirando-o da impostura tirana.
O que une os três personagens é o silêncio surdo a respeito de uma experiência que toca a cada um de maneira particular, a morte. É o vazio não subjetivado que cada um dos três personagens vivencia. A mãe que não simboliza a perda de seu marido, o filho que não encontra repertório para elaborar a falta de seu pai e a vizinha que não consegue lidar com a morte de um filho. O sofrimento expresso nos sintomas de cada um dos personagens fica na inscrição do “mal-dito”. A ausência de simbolização e de nomeação da perda, por cada um dos personagens, remete ao pior, na medida em que a negação do afeto em questão os leva a um acting-out diante da angústia. O que o filme reflete é que construímos a vida sobre a dimensão inexorável da morte. Mesmo não havendo representação e nomeação para a morte, ainda assim, entrar em contato com esse limite radical é o que nos faz humanos.
Mommy é um filme inquietante e que nos convida à reflexão ao tratar do desencontro amoroso no laço familiar. No cuidado e formação dos filhos, os pais ou aqueles que exercem tal função inspiram, marcam, tocam, interpretam e são interpretados. Assim, transmitem aquilo que escapa a si mesmos no exercício essencial da constituição do humano e da vida. Nas palavras de Jorge Forbes, “família é daquilo que todo mundo se queixa e se o fazemos é porque ela não oferece o que dela, especialmente dela gostaríamos de receber: o nome do desejo.”
Flávia Garcia é psicanalista, membro do Corpo de Formação em Psicanálise do Instituto da Psicanálise Lacaniana – IPLA, SP.