Eva vítima, Adão culpado. E a cobra? 12/12/2013

Por Alain Mouzat

Penalizar o cliente da prostituta permitiria, segundo a ministra dos Direitos da Mulher da França, acabar com a prostituição e compensar o desequilíbrio ente os sexos. Será?

A França acaba de votar uma lei penalizando o cliente da prostituta. Essa lei acompanha a proposta da ministra dos Direitos da Mulher, Najat Vallaud-Belkacem, que declarou: “Desejo que a prostituição desapareça”. Por um lado, a medida tem toda aparência de atitude moralista de um Estado que quer se meter nas práticas sexuais de seus administrados, em nome do bem deles; não na perspectiva vitoriana da moral e da religião, mas em nome de uma moderna igualdade dos sexos. Para a ministra, “a compra de serviços sexuais sistematizada (sic) é incompatível com a igualdade entre os sexos”.

A problemática teve o mérito de deixar confusos tanto os políticos de esquerda quanto os de direita: poucos dos que votaram a favor estavam totalmente convencidos, e os que votaram contra achavam no fundo que não era tão mal assim. A lei passou. Porque os socialistas têm maioria no parlamento francês, talvez.

Mas a questão interpelou a todos, particularmente pela dificuldade de definir e de sustentar uma posição que não recebe solução a priori nos catecismos partidários.

Da prostituição, ninguém é “a favor”. Mas também ninguém quer ver uma “proibição” puritana. Como ir contra a liberalização das práticas sexuais? Enquanto um ex-ministro se gaba de seu consumo sexual, o governo seria inoportuno ao vir morigerar o povo…

A filósofa francesa Elisabeth Badinter, conhecida militante feminista, pouco suspeita de complacência com o poder masculino, denuncia: suprimir a prostituição para compensar a diferença sexual seria penalizar a sexualidade masculina e, ademais, não compete a ninguém legiferar em matéria de sexo.

De fato, a lei que outrora tolhia os desejos do particular em prol de uma moral geral, parece hoje estar mais decidido do que nunca a fazer a felicidade de cada um. Pela punição se for preciso. O sonho de uma sexualidade “limpa” mudou de configuração desde o século XIX, mas continua vivo. O sujo, o pecaminoso que representa a prostituta deslocou-se para a rede de proxenetismo e para o cliente. A prostituta se transformou em vítima da exploração das redes mafiosas e do “consumidor” e, portanto, é candidata a soluções de resgate social: lhe é oferecida “reinserção”, da mesma forma que a um criminoso condenado.

Mas a lei não é cega: ela também providenciou, para os clientes multados, medidas como um “estágio de sensibilização ao combate contra a compra de atos sexuais”.

Aliás, curiosamente, e isso Elisabeth Badinter o observa, houve pouca reação masculina. Apenas um manifesto de 343 “tarados”, intelectuais reconhecidos, e alguns clientes de prostitutas que publicaram nos meios de comunicação testemunhos afirmando o quanto a relação que eles mantêm com prostitutas é saudável e resolve quer a sua miséria sexual, quer a sua timidez, quer a sua falta de tempo para arrumar melhor… Enfim, todos argumentos que escondem mal – apesar das afirmações em contrário – a condição degradada do sexo que praticam, num afeto tarifado.

Estaríamos assistindo a uma mutação dos comportamentos tal como aquele, no século XVIII, que comandou a aparição do casamento por inclinação, e enterrou socialmente o casamento por interesse? Estaríamos acaso entrando numa era onde amor e gozo sexual seriam enfim reconciliados, em que a sexualidade degradada, porque paga, da prostituta não teria mais vez? Nesse caso a lei só viria colaborar com as mudanças em curso.

Mas é de se notar que o casamento por amor, mudança profunda e definitiva, nunca foi comandado pela lei, mas sim pela satisfação que cada um encontrou nessa nova posição, trazida por um discurso inovador que pedia que sejam ouvidos os sentimentos.

Mais ainda, os consultórios dos psicanalistas recebem pessoas sofrendo não de sexualidade reprimida, de “miséria sexual”, mas sim de “gozo desbussolado” que se manifesta não só nos comportamentos sexuais, mas que demonstra sobremaneira que lei nenhuma dará conta de encampar a sexualidade, particularmente desresponsabilizando seus atores, clientes e prostitutas.

Alain Mouzat é professor da Universidade de São Paulo, doutor em linguística e psicanalista membro do Instituto da Psicanálise Lacaniana