Por Dorothee Rüdiger
O que está em jogo nessa disputa entre os que querem retratar a vida alheia e os que temem sua vida íntima invadida?
E sobrou, mais uma vez, para o Supremo Tribunal Federal. Popular entre os brasileiros por decidir questões politicamente candentes, o Supremo tem por esses dias uma tarefa à altura de sua jurisdição. Deve julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade que põe em foco não somente dois artigos do Código Civil (artigos 20 e 21) como também uma briga de longa data entre pessoas que se dedicam a retratar a vida de pessoas notáveis e as pessoas retratadas por suas biografias. Os dois artigos do Código Civil são uma verdadeira pedra no sapato dos escritores, historiadores e jornalistas biógrafos, pois os obrigam a procurar a autorização dos biografados ou de seus herdeiros. Quando essas pessoas não se acham tão bem retratados e não autorizam a biografia, anos de pesquisa vão por água abaixo. Uma biografia não autorizada, no Brasil, não pode ser publicada. Cansada dessa situação, a Associação Nacional de Editores de Livros foi procurar o Supremo para defender a liberdade de expressão dos autores biógrafos. No entanto, o que está em jogo nessa disputa entre os que querem retratar a vida alheia e os artistas, políticos e outras personalidades públicas que temem sua intimidade invadida?
Todos nós gostamos de estar “bem na fita”. Boa aparência, felicidade na vida familiar, sucesso profissional são ingredientes de uma vida realizada. Tentamos mostrar aos outros esse nosso “lado A” impecável. Espaço não falta para isso. Para que, afinal, existem as redes sociais! Se é assim com nós reles mortais, que dirá com artistas, políticos e outros famosos que trabalham sob a mira dos holofotes da vida pública. Vivem não somente de suas produções, como também de sua imagem. Portanto, há de se concordar que uma biografia não autorizada pode ser um estorvo na vida dessas pessoas.
Ouvir estórias sobre a vida de pessoas alheias é o ofício dos psicanalistas. Cada um dos analisandos tem a própria biografia a contar, seu romance familiar, como diria Sigmund Freud. Sabemos que na livre associação estamos no campo da invenção. Verdade dos fatos, invenções, fantasias e delírios misturam-se nesses relatos produzidos no divã. São as palavras dos outros, recebidas como herança cultural, que nos moldam e que, ao mesmo tempo, nos possibilitam inventarmos nossa vida, disse Jacques Lacan. No fundo, somos produtos de nossas próprias verdades mentirosas. Não há história de vida, há estórias e mais estórias de vida. Para nós psicanalistas é óbvio que, ao contar nossas estórias de vida, ocultamos detalhes indizíveis dos olhos e ouvidos dos outros e de nós mesmos. Além disso, ninguém está livre de pedras no sapato. Carregamos as questões de amor e morte conosco, sem jamais resolver seus enigmas.
Quando um biógrafo se interessa pela vida de alguém que se destaca na vida pública, pode trazer à luz as pedras no sapato de quem retrata: um acidente, um amor fracassado, uma dívida com alguém. Expor em público o que as pessoas não revelam nem para si próprios pode causar um tremendo mal-estar.
No entanto, a psicanálise nos mostra também que há em cada um de nós um estranho íntimo, algo que nos assusta e que, ao mesmo tempo, nos faz únicos. E, mesmo se o mundo faz mau juízo de nós e de nossas criações, quem se autoriza a assumir esse estranho íntimo, essa singularidade, pouco vai se importar com o que dizem. Vai continuar amando e criando sua vida independentemente dos ecos da imprensa, da televisão, das biografias, autorizadas ou não. O estilo de vida e da obra de quem quer que seja sempre terá a resposta dos outros. Daí a necessidade de nos responsabilizarmos pelo que criamos, como diz Jorge Forbes. Se somos responsáveis pelas nossas vidas, biógrafos, jornalistas e historiadores não vão nos incomodar. Que escrevam e gozem da liberdade de retratar a vida das pessoas que se destacam da multidão pelas suas bem contadas estórias de vida.
Dorothee Rüdiger é psicanalista e doutora em Direito pela Universidade de São Paulo