Essência Vazia 16/11/2017

Por Lilian Mattos

No Curso TerraDois, coordenado pelo Dr. Jorge Forbes, vimos que diante dos acelerados progressos científicos e tecnológicos, anunciando o transhumanismo e até mesmo o pós-humanismo, coloca-se uma questão fundamental: O que é o ser humano?

Esta pergunta é o título da obra que traz o diálogo entre dois autores de diferentes áreas do conhecimento: Jean-Didier Vincent, biólogo e Luc Ferry, filósofo.

Jean-Didier Vincent é categórico ao dizer que o homem é um animal que descende do macaco. Rigoroso em seus argumentos, vai nos confrontando aqui e acolá, com as evidências científicas. Até a emoção estética é reduzida a fruto do trabalho cerebral. A duração prolongada da infância do homem o distingue do macaco. A razão, a emoção, os genes não constituem o apanágio do homem. Nem a neurose escapa, pois muitos animais domésticos partilham a neurose de seus donos.

Vincent rompe com qualquer resíduo antropocêntrico. Pobre homem! Então, o que afinal o diferencia das outras espécies animais?

O tempo e a técnica, a morte e a linguagem. O homem fala e descobre sua própria morte na morte do outro. Tem uma história e partilha com seus semelhantes. Tudo isso explicado detalhadamente pelos estímulos elétricos cerebrais, dispositivos anatômicos e organizações neuronais de origem genética.

Enuncia que à diferença do animal o homem sabe que ele sabe e em razão de suas paixões, o amor e o ódio, ele não é um animal. Só o homem conhece o amor e o ódio, por isso o animal jamais cometeria os horrores de um genocídio.

Resta o riso, situado na face interna do hemisfério esquerdo, na parte anterior da área chamada motriz suplementar, como próprio do homem.

Luc Ferry, por sua vez, propõe uma reflexão sobre a questão do estatuto do humano no seio da natureza, que nada tem de modesto, um tema complexo que vem existindo e persistindo através dos séculos.

O que nos faz humanos? A essência do homem é a sua liberdade, defende o filósofo, pois o próprio do humano não está determinado pela natureza, materialismo biológico ou biologismo, nem pela história, materialismo histórico.

Para ele, a situação em que a pessoa está não implica em determinação. A situação pode ser natural, nascemos com um corpo,  e social-histórica, este corpo situa-se no tempo e no espaço. Quanto a isso nada pode ser feito e de fato não os escolhemos. Contudo, a liberdade do homem não é aniquilada pelas situações, mas é exatamente em relação a elas que a liberdade se exerce.

Ferry inclui neste debate, entre outros, Rousseau, Kant e Sartre. Com Rousseau, retoma a velha discussão sobre o inato e o adquirido, trazendo à baila ideias ligadas às filosofias da liberdade. O essencial do humano não está nos dados naturais inatos, mas na capacidade de aperfeiçoar-se. No mundo democrático o mérito conta mais que o talento. Mas não há mérito sem liberdade de escolha!

Kant, discípulo de Rousseau, diz que a virtude e ação desinteressada está ligada ao fato do homem poder agir livremente sem ser programado pela natureza ou história, buscando o bem comum e a superação de interesses individuais.

A existência precede a essência, diz Sartre. O ser humano não pode ser definido a priori, não há natureza humana. O que o diferencia dos objetos e animais é o fato de ser fundamentalmente livre para inventar o bem e o mal.

Incluo na discussão um terceiro interessado no tema, Jorge Forbes, psicanalista.  Privilegia, no lugar da palavra liberdade, o real. Cita Lacan, dizendo que o homem é sem substância, portanto vazio. Não podemos negá-lo,  diz Forbes, sob o risco de sucumbir aos determinismos:  natureza,  razão e  religião.

Forbes discute em TerraDois, programa exibido na TV Cultura, os novos modos de viver na pós-modernidade e seus dilemas éticos diante do imponderável, para o qual teremos que inventar respostas e nos responsabilizar por elas, fora das certezas e verdades científicas e religiosas.

Quais serão as implicações para a humanidade diante do acelerado progresso da biotecnologia?

A inteligência artificial e a tecnologia da informação vão superar, de forma irremediável, as habilidades humanas e afetar o modo como nos constituímos e vivemos. Haverá grandes mudanças na sociedade e na economia.

Neste cenário, há os que começam a se amedrontar e imaginar possibilidades aterrorizantes, enquanto outros veem uma chance única para a humanidade se reinventar. Seja de qual lado estivermos, nunca foi tão importante e fundamental refletirmos sobre o que nos faz humanos.

As máquinas terão uma capacidade de processamento de dados infinitamente superior à dos humanos. Poderão realizar tarefas de maneira mais eficaz em menos tempo e com menor custo. Mas, regidas por procedimentos lógicos perfeitamente definidos, ao contrário dos humanos, as máquinas não são livres. Não são livres para escolher e decidir a partir de um saber que não se sabe, o saber inconsciente.

O que faz de nós humanos talvez seja nossa infinita capacidade de inventar futuros imprevisíveis.

Quanto à essência humana, Vincent nos faz lembrar que existe uma consequência no corpo, oscilações bioquímicas que afetam o modo como funcionamos e a nossa constituição física. Já Ferry,  reforça a ideia de que somos livres e fazemos escolhas, podemos cometer atrocidades, mas exatamente por isso também podemos ter atos de generosidade. Concluímos com Forbes, que a escolha traz consigo a responsabilidade e que é preciso suportar o vazio, o acaso e a surpresa.

Lilian Cristina Costa Mattos é Pedagoga e Membro do Corpo de Formação do IPLA.

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