Por Claudia Riolfi
Frente à dificuldade de ancoragem no corpo próprio, uma análise leva à percepção de algo fundamental: o esquema do outro nunca serve para você
Júlia encontrou a psicanálise em abril de 2013. Foi encaminhada para a Clínica de Psicanálise do Centro de Estudos do Genoma Humano da Universidade de São Paulo, pois estava se sentindo deprimida e inconformada por ser portadora de Distrofia Miotônica de Steinert. A doença degenerativa lhe gerava cansaço, fraqueza muscular, sonolência e necessidade de utilização de respirador artificial para dormir.
Quando foi atendida pela primeira vez, tinha 44 anos, era mãe de dois filhos adultos e estava separada do pai de seus filhos. Mantinha um relacionamento longo com um companheiro que colocava o uso de drogas como condição para a manutenção desse relacionamento.
A entrevista inicial com Jorge Forbes e Mayana Zatz foi produtiva para o delineamento do caso do caso. Todos que a presenciaram puderam cernir os pontos mais importantes para perceber como e porque Júlia sofria tanto. Elenco, em forma de tópicos, os traços principais que foram destacados:
Sintomas comportamentais: a moça apresentava, preferencialmente, a agressividade disparatada e o uso de drogas.
Posição de gozo: a) a tendência para a queixa estéril; b) o modo de satisfação pulsional nomeado por Jacques Lacan, no Seminário de 1964 (Livro 11), como “se fazer cagar”; c) a sedução histérica, utilizada, ao lado da verborragia, como cortina de fumaça; d) o congelamento em uma posição que poderia ser nomeada por meio do sintagma “a filha problema”.
Posição frente aos seus sintomas: uma falta de implicação com relação à própria vida e uma dificuldade para se estranhar, muito provavelmente ligada ao uso de narcóticos.
A direção do tratamento inicialmente pactuada visou a alterar a economia do gozo, mais especificamente por meio das seguintes modificações. Levar a paciente a: a) Sair da posição de querelante; b) Esvaziar o significante-mestre “a filha problema” de sentido; e c) Incluir o desejo em sua vida sem necessidade de degradar-se.
A colaboradora que se encarregou do caso narrou que, como a paciente mora em localidade muito distante de São Paulo, e tem dificuldades de locomoção, o percurso analítico se estendeu por um período 05 meses, com sessões presenciais em média a cada três semanas e sessões com frequência variável via Skype.
Ela destacou dois manejos em seu relato clínico. O primeiro se relacionou com a diminuição do intervalo entre as sessões. A analista levou a paciente a perceber que o conteúdo inicialmente trazido por ela sempre girava em torno de temas picantes de conteúdo sexual íntimo. Ponderou que esse manejo fez com que sua criatividade no campo da escatologia e dos comportamentos bizarros perdessem o colorido e a graça, levando-a a ficar sem assunto prêt-à-porter.
O segundo manejo foi levar a moça a trocar o campo da deontologia, do dever, pela ética do desejo. Por exemplo, a cada vez que Júlia dizia que precisava deixar de cheirar cocaína, a analista lhe perguntava como se realmente não soubesse: Mas por que você precisa fazer isto? Tentar responder a esse tipo de pergunta a levou a perceber o quanto era escravizada à expectativa do outro.
Os efeitos terapêuticos foram evidentes. A moça passou a se orientar no tempo e no espaço; implicou-se com a vida de seus filhos; rompeu a relação com o parceiro chantagista; parou de ter necessidade de exibir comportamentos sexuais masculinizados; assumiu sua relação de dependência com as drogas, e, a partir disso, resolveu procurar um tratamento; e arranjou um namorado que lhe trata bem.
A entrevista de retorno proporcionou uma rotação para uma possível radicalização da divisão subjetiva, com bom prognóstico de entrada em análise. Como é muito comum, em especial para quem tem dificuldade de ancoragem no corpo próprio, Júlia falou de si por meio do discurso relatado. Utilizou-se do típico Eu tenho um amigo que…. Jorge Forbes foi rápido: – Esse esquema serve pra você também?, perguntou, cheio de curiosidade.
Forbes terminou a entrevista de retorno lhe mostrando as diferenças entre o caso do amigo e o dela. Para a moça, deve ter sido uma aula de psicanálise. Primeira lição: O esquema do outro nunca serve para você. A história do sapatinho de cristal que, prontinho, vai caber no seu pé, era um conto de fadas e pertenceu à sua infância.
Júlia entendeu. – Eu era uma pessoa chata mesmo, concluiu. Excelente mudança para quem, julgando ser princesa, esperava, em berço nada esplêndido, o príncipe que, por não existir, não vem.
Claudia Riolfi é psicanalista, cursou pós-doutorado em Linguística na Université Paris 8 Vincennes-Saint-Denis. Professora na Faculdade de Educação na Universidade de São Paulo. Diretora Geral do IPLA