Por Suelen Gregatti da Igreja
Falar de suas escolhas não era fácil. Identificado à imagem que construiu de si, não saía da posição de completude.
Para todo neurótico, fazer escolhas pode ser um grande impasse. Seja escolher o modo de convidar um amor não declarado para um jantar romântico, seja decidir por iniciar uma análise, o caminho da felicidade pode ser um embrulho na vida de uma pessoa. Afinal, no fundo, no fundo, ela sabe que em toda escolha boba se perfila algo ligado ao desejo. Para não ter que se deparar com ele, tenta fingir (para si mesmo) que não escolheu, foi escolhido. Para ilustrar, recorremos a um caso clínico.
Davi, 15 anos, loiro, bem arrumado foi levado pela mãe à Clínica de Psicanálise do Centro de Estudos do Genoma Humano da Universidade de São Paulo. Ao encontrar Jorge Forbes e Mayana Zatz declarou-se preocupada com a aparente falta de reação do rapaz diante do recebimento do diagnóstico de portador de uma doença degenerativa: uma distrofia tipo Distrofia muscular do tipo cinturas (DMC). Por ser psicóloga, ela sabia que, ao receberem um diagnóstico desses, muitas pessoas costumam chorar, lamentar ou enfurecer-se. Ficou com medo do pior por notar que isso não ocorreu com Davi.
A equipe clínica concordou com a leitura da mãe. No início do atendimento clínico, o jovem respondeu estritamente ao que lhe foi perguntado, não fez questionamentos, sequer teve a curiosidade de aproveitar da presença da Dra. Zatz para se informar acerca da possibilidade de cura de sua doença.
Dr. Forbes tratou o silêncio como uma evasiva para o enfrentamento do impacto psíquico da doença. Certamente logo notou que as certezas do jovem eram pouco convincentes. Afirmava ter aprendido a lidar com a doença, mas estava sem fazer fisioterapia, fundamental para seu tratamento. Afirmou que havia aceitado o diagnóstico, contudo, não queria que as pessoas próximas o conhecessem. Ao falar a respeito de sua escolha profissional, afirmou querer cursar fisioterapia, carreira que não incluía os limites do seu corpo. Ao ser alertado para a necessidade de mudar sua escolha não deu mostras de ter um plano “b”. A posição frente aos seus sintomas se mostrava como um mascaramento diante da própria vida.
Da entrevista, destacamos dois tempos. O primeiro foi o de negação. Perguntado pelo analista a respeito dos motivos que o levaram a procurar atendimento psicanalítico, as respostas foram desencontradas. Confundiu a ida à Clínica de Psicanálise com a ida ao Genoma para atendimento médico; trocou a motivação para fazer análise pela explanação dos exames que havia feito; e colocou o desejo da mãe de que fosse atendido como substitutivo da própria decisão.
Falar de suas escolhas não era fácil. Identificado à imagem que construiu de si, não saía da posição de completude. Ao tratar da lida com a doença, respondeu: “- Eu faço as mesmas coisas que fazia antes, só foi difícil aceitar a doença. Mas já aceitei”. Aquilo que teria relação com o que estava sentindo, ou seja, a dificuldade de aceitar o diagnóstico, foi encoberto pela aparente resolução (“já aceitei”). Como foi possível para Forbes tirá-lo disso? Por meio de uma analogia comum ao universo masculino. Respondendo aos chavões que ouvia, ele interpretou prontamente: “- Você está parecendo jogador de futebol, só fala coisas prontas”.
Paralelamente, a oblatividade masculina, típica do obsessivo, se fazia presente. Quando interrogado a respeito dos relacionamentos, Davi falou que gostava de festas, saía com amigos e fazia “caridade” com “as meninas que pegava”. Falou do lugar de quem acredita que: a) as mulheres precisam de algo; e b) caberia a ele ser o provedor. Esse aspecto foi bastante valorizado por Forbes na discussão do caso que se seguiu à entrevista.
Como Forbes concluiria essa entrevista? Apontando para Davi que o rapaz parecia ter o que dizer, mas caberia a ele decidir se queria ou não seguir um tratamento. Explicou o tipo de trabalho feito pela equipe, falou da expertise do trabalho desenvolvido, declarou que estávamos abertos a recebê-lo. Restava saber se ele queria.
A fala do analista era uma mescla de “estamos abertos para te receber” e “só o faremos se de fato houver uma demonstração de interesse de sua parte”. Ao falar, atuou de forma a passar um certo descaso na voz. Era preciso que Davi aprendesse, para além de ser escolhido, a escolher.
O propósito analítico foi atingido. Quando Forbes falou que caberia ao rapaz decidir a respeito de querer ou não uma análise, sua a resposta veio decidida: “– Quero”. Mesmo assim, o analista não acatou prontamente sua decisão. Apontou para a necessidade de manter a frequência nas sessões para que o tratamento tivesse continuidade. Davi bancou. Caberia ao analista que passasse a atendê-lo dar continuidade à sua aposta.
Suelen Gregatti da Igreja é professora de língua portuguesa e doutoranda em Educação pela Universidade de São Paulo.