Epilética do desejo 10/12/2015

Por Patricia Furlan

Era muito curioso ouvir que as crises nunca aconteciam quando ela estava sozinha, sempre tinha plateia e almofadas a volta

Araci, 20 anos, estudante do 4º semestre de Administração, é descendente de índio, negro e alemão. Tem olhos cor jabuticaba, cabelos pretos e lisos, pele jambo, corpo abrasileirado. Atendo-a uma vez por semana, desde meados de julho deste ano, em meu consultório. Foi encaminhada por um neurologista com diagnóstico de epilepsia e ansiedade. 

Nas primeiras sessões, a queixa da paciente passava longe da “epilepsia”. Seu incomodo eram os pais, “eles ficam em cima de mim o tempo inteiro, pensam que eu sou criança, não perceberam que eu cresci”. Araci diz que queria ter suas coisas, seu carro, sua casa, se casar, e futuramente sua empresa. “Eu não suporto meus pais em cima de mim, sinto que estou num círculo fechado. ” Perguntei: “E por que àquilo que você diz não querer, é o que você mais pede ao outro?” 

Queixa-se por não conseguir se posicionar perante as pessoas, principalmente junto aos pais. Acha que precisa respeitá-los, fica quieta, e aí aparecem as epilepsias. “Aquilo que você não coloca em palavras, seu corpo fala por você”, pontuei. 

“Show da Maria Betânia” é o que Araci conta fazer.  Quando não consegue falar, vai para o extremo. Chama para a briga e roda a baiana. Sua queixa é não saber conversar, não encontrar o meio termo, é oito ou oitenta. 

Filha primogênita dentre 3 irmãos, mora com a mãe, Iracema, e o padrasto, Moacir. Este, quando no 8º mês de gestação de Araci, conheceu sua mãe, se apaixonou e foi mais ou menos assim: “hoje eu quero ser teu homem, te dar até meu sobrenome, apagar de vez o teu passado”. Como nos versos da música E pra sempre te amar da dupla Guilherme & Santiago. Sua mãe era mulher fogosa, até este encontro. Teve Araci em uma “diversãozinha”, nas palavras da paciente. 

Iracema rouba no jogo. Deixou seu passado de lado, mas não aceita o sobrenome de Moacir para Araci. Alega não achar justo dar o sobrenome de alguém que não era o pai biológico. Araci até os 11 anos ficou sem o sobrenome paterno. Foi quando sua mãe lhe contou que seu pai, não era “o” seu pai. Moacir, não era mais o pai de direito, embora o fosse de fato. Sua mãe procurou o pai biológico, que não sabia que tinha uma filha, o informou e pediu o seu sobrenome para a menina. 

Araci conta que foi com o seu primeiro namorado, aos 18 anos, que tudo começou. O início da vida sexual, o labirinto amoroso, as intromissões maternas no namoro, estão relacionadas aos primeiros episódios tidos como “epilepsia”. Pergunto como é a sua epilepsia. Ela relata que consegue premeditar, “começo a me sentir atordoada, então aviso quem estiver comigo, eles me deitam no chão e seguram a minha cabeça”. Explica que tem um neurônio com “defeito”, atribui a ele a causa da epilepsia. Não bastaram as crises epilépticas e ser medicada com Frisium (tranquilizante) e Depakote (anticonvulsivante), surgiram os “surtos psicóticos”, como ela nomeia.  

Conta que uma vez, ao ouvir uma moça que queria suicidar-se, ao contrário das pessoas que a convenciam do contrário, ela dizia: “isso, vai lá, faz isso mesmo, já resolve tudo! ” Depois disso passava em sua cabeça, uma cena de alguém pulando da ponte, “inconsciente pedia para que me levasse junto. ” Pergunto. “Araci, e por você iria querer se matar? ” “Acho que eu sou um estorvo para eles, minha mãe teve que largar o emprego pra ficar comigo.” 

Relata dois episódios que em sua opinião, confirmam tratar-se de surtos psicóticos.  Um dia na casa da sua tia, ela subiu correndo as escadas e estava tentando abrir a janela.  “Isso foi o que meu namorado e minha tia contaram, pois eu não me lembro de nada. Eles achavam que eu queria pular”.  Em outra ocasião, saiu de sua casa correndo muito rápido, seu pai não conseguiu alcançá-la. Foi uma vizinha que conseguiu pará-la. Chamou-a pelo nome e ela respondeu: “Meu nome não é Araci, sou Geni. Sou casada, não moro aqui”. 

O neurologista solicitou um exame, – Monitorizarão Vídeo Encefalograma Contínua -, que foi realizada no centro nacional de referência do tratamento em epilepsia no HC da USP de Ribeirão Preto.  O laudo não confirmou epilepsia. Mostrou tratar-se de crises psicogênicas, também chamadas de pseudocrises. Após o resultado, o neurologista deu alta, sob a condição de que Araci fosse cuidada 24 horas por um responsável e passou o caso para acompanhamento de um psiquiatra.  A orientação foi levada à risca pela mãe. 

Fui procurada pelo psiquiatra. No encontro que tivemos, ele diz que Araci é um caso enigmático. Não tem diagnóstico fechado. Quando do meu questionamento sobre a necessidade de monitoramento 24 horas, uma vez que não entendia haver risco de uma passagem ao ato, ele reiterou cauteloso, a orientação do neurologista.  Teme que ela possa se suicidar ou sair a esmo e parar em uma cidade vizinha. Incluiu novas medicações: Risperidon (neurolépico), Neural (anticonvulsivante). 

Minha hipótese diagnóstica é tratar-se de um caso de histeria. Era muito curioso ouvir que as crises nunca aconteciam quando ela estava sozinha, sempre tinha plateia e almofadas a volta. Diante das minhas intervenções: – “Araci, já que você sabe quando vai acontecer, não dá para você mesma tentar controlar?” “Você não é só essa bonequinha de porcelana que não pode sentir um cheiro de cigarro, que desmaia. Que não pode ter dor de barriga, que dá epilepsia. Que não pode ser contrariada, que surta. ” Não conseguia deslocá-la. Os chistes utilizados nas primeiras sessões, para descolá-la desse lugar culpabilizante de insuportável dos pais, não tinham efeito. Ainda assim, Araci continuava vindo às sessões. Questionada, diz que é um lugar onde ela pode falar o que pensa e ser do jeito que é. 

Após o laudo negativo de epilepsia, as crises continuavam quase que diariamente. Na tentativa de implicá-la, contei sobre as histéricas de Freud. Da forma padronizada de expressar um sofrimento e os impasses diante do desejo. Desafiei-a, dizendo que ela poderia ser mais criativa na expressão do seu mal-estar e perguntei: “Araci, o que você acha que você tem?” Foi então que ela começou a falar sobre suas fantasias e memórias. Relatou que estava se lembrando de coisas que pareciam estar enterradas no passado. Assim, cena por cena, foi elaborando sua angústia diante do assédio que envolviam homens próximos a ela. Desde então não houve mais desmaios, surtos e crises epilépticas. 

Parto da hipótese clínica que frente a dificuldade em suportar seu excesso, – sua beleza e seu sex appeal –, Araci respondia a partir dos pseudônimos de epiléptica, surtada, louca e suicida. Emprestava-se e se via como objeto do outro. Dos pais, a quem pedia proteção, mantendo-se em uma posição infantilizada e irresponsável.  Dos médicos, que ante aos seus sintomas, demandava um saber sobre si e uma solução mágica.  Dos homens, a quem elegia como perigo e ameaça. 

Araci retomou a atividade física que tanto gosta. Na faculdade está participando efetivamente e com frequência das aulas. Tem percebido que o namorado é um cara legal. Como direção do tratamento, tenho procurado ajudá-la a sustentar os movimentos recentes que vem fazendo. Incluindo a desalienação da tutela materna e a responsabilidade por suas escolhas. Na dificuldade em lidar com seus estranhamentos, convidá-la a inventar um nome que não seja pela via do adoecimento e da patologização do seu desejo. 

Patrícia Furlan é psicanalista clínica. Caso clínico apresentado na Conversação Clínica do IPLA 2015.

Deixe um comentário