Por Emari Andrade
Estudarmos dificuldades de compreensão, em textos publicados, pode elucidar a leitura de casos clínicos
Em Leitura errada existe, o linguista Sírio Possenti propõe uma importante distinção para todos que desejam saber a diferença entre o equívoco da linguagem e o erro de leitura: a compreensão, dependente dos elementos de um texto, como, por exemplo, a localização de sua tese, e a interpretação, que varia do olhar de cada leitor, sendo, inclusive, sujeita a desvios imaginários.
Para o linguista, a partir dessa distinção não se pode afirmar que “a leitura é algo subjetivo, que existem tantas leituras quanto leitores”. Se, por um lado, frisa Possenti, o sentido dos textos não é fixo, por outro “a liberalidade total não é possível”, pois uma leitura competente deve ser feita a partir da reconstrução das pistas linguístico-discursivas oferecidas na materialidade do texto.
De acordo com essa perspectiva, o texto é um objeto simbólico que precisa ser interpretado e, por este motivo, o leitor não está livre para atribuir qualquer sentido ao que lê. Existem restrições e essas precisam ser respeitadas. Alguns podem estar pensando: O que o estudioso em psicanálise teria a ver com essa discussão?
Estudarmos dificuldades de compreensão, em textos publicados, pode elucidar a leitura de casos clínicos. Então, a seguir, proponho um pequeno exercício de análise linguística. É um convite a todos para refletirem a respeito do que é ler um texto. Uma convocação para não aceitarmos todas as leituras como possíveis. Uma provocação para não deixarmos de levar em conta os elementos textuais e o contexto daquilo que estão lendo.
O espaço que a mídia ganha dentro do ambiente escolar tem sido cada vez maior. Um exemplo é a formulação do Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM que, na sua edição de 2011, relacionou 56 das 180 questões do exame com textos e informações retiradas de revistas e sites dirigidos ao grande público. Será essa a melhor opção para a educação brasileira?
No Observatório da Imprensa, Samira Moratti expõe a seguinte interpretação de textos divulgada pelo Portal 180 graus, do Piauí. Em 2010, na matéria “Lei defende a continuação da gravidez proveniente de estupro”, a jornalista mostrou ter cometido um erro de leitura. Ao invés de, no corpo da matéria, explicar o corpo da lei, o redator escreveu o seguinte: “O estupro é permitido no Brasil pelo Código Penal desde o ano de 1940.”
Seria lícito o jornalista dizer que a defesa do estupro estava nas entrelinhas? O jornalista desconsiderou as chaves de leitura presentes no texto e tentou abri-lo com as suas. Como assim? Isolou a palavra “estupro” e “lei” e a partir daí, escreveu o que queria, independente do que tinha lido.
No afã de argumentar na direção apontada pelo seu narcisismo, fez de conta que as letras não existiam. Se temos ouvidos para ouvir, olhos para ler, não ignoremos o trabalho de construção e de desconstrução, tão necessário para ler, e para analisar. Caso contrário, o que diferencia “ler” de “delirar”?
Emari Andrade é professora de língua portuguesa, faz doutorado em educação na Universidade de São Paulo e é monitora do curso online do IPLA.