Entre a obediência e a vergonha na cara 21/05/2015

Por Renata Costa

A psicanalista recupera a expressão popular ter vergonha na cara para designar “uma posição na qual o sujeito é capaz de, amparado em seus traços decisórios íntimos, sustentar sua responsabilidade”

No dia 29 de abril, assistimos a cenas lamentáveis ocorridas em frente à Assembleia Legislativa, em Curitiba (PR). Na ocasião, professores e servidores públicos, que protestavam contra o projeto do governo que modificaria a previdência dos funcionários públicos estaduais, foram reprimidos, com violência, por policiais militares. De acordo com o A Folha, 150 civis ficaram feridos. Não é a primeira manifestação ocorrida neste ano que termina em pancadaria por parte da polícia.

A novidade ficou por conta de uma notícia polêmica. Um dia após as manifestações, a agência Estado noticiou que 17 policiais teriam sido presos por se recusarem a participar do cerco contra os professores. No dia 30 de abril, a notícia foi desmentida pela PM do Paraná. Segundo a coordenadora de imprensa da corporação, Márcia Santos, “Não houve recusa e não houve prisão de policiais militares”. Não sabemos da verdade dos fatos, mas nos permitimos analisar a primeira versão divulgada. Caso 17 policiais tivessem se recusado a espancar professores, como ler sua decisão?

Parece que um trecho do livro A Língua Espraiada, escrito por Claudia Riolfi, em 2015, vem bem a calhar. Lá, a psicanalista recupera a expressão popular ter vergonha na cara para designar “uma posição na qual o sujeito é capaz de, amparado em seus traços decisórios íntimos, sustentar sua responsabilidade”. Segundo a autora, quem tem vergonha na cara, “apoia-se nela para não se ver constrangido por qualquer tipo de convite ou imposição externa” (p. 273).

Para exemplificar como são atitudes de alguém que tem vergonha na cara, Riolfi relata uma passagem do filme O labirinto do fauno (p. 275). Capturado por Vidal, um capitão cruel do exército franquista, um jovem guerrilheiro resiste bravamente às torturas impostas por aquele.

Percebendo que o jovem poderia não resistir aos maus tratos e falecer, Vidal solicita ao médico de sua família que mantivesse o rapaz vivo, para que o “interrogatório” pudesse continuar. Conversando com o paciente, o médico soube de seu posicionamento, qual seja, ter uma morte indolor, pois, caso as torturas continuassem, ele poderia não resistir e colocar seus companheiros em risco. Ele estava decidido a morrer por eles. Apesar de não ser favorável à eutanásia, o médico fez a vontade do rapaz. Questionado pelo Capitão, que queria saber o motivo da desobediência, respondeu: “Porque obedecer sem pensar é para gente como o senhor, não pra mim”.

A mesma frase poderia ter sido dita pelos 17 policiais paranaenses. Os policiais que teriam se recusado a confrontar duramente os professores agiram como o médico, que se colocou em risco por não conseguir agir de maneira contrária a seus princípios.

Caso eles tenham mesmo se recusado a espancar, por exemplo, aqueles que poderiam ser os professores de seus filhos, provavelmente estariam regidos pelo que Claudia Riolfi designa como uma ética singular, que não se norteia por uma moral externa a ela, mas por seu “Deus interno”. Assim, a pessoa faz o que julga ser certo porque, simplesmente, não poderia fazer outra coisa. A nosso ver, o caso é importante porque remete ao que, de melhor, se pode esperar de uma psicanálise levada a um bom termo, ou, nas palavras de Jorge Forbes, a quanto a honra recobre o ponto de vergonha.

Renata Costa é mestre em educação e pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisa Produção Escrita e Psicanálise – GEPPEP, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, onde, atualmente, realiza sua pesquisa de doutorado.