Emília, essa menina é uma maravilha! 23/07/2015

Por Liége Lise

A escuta do analista legitimou a esquisitice e a estranheza, metáforas da percepção que por vezes a paciente tinha diante dos sintomas da distrofia em seu corpo.

A psicanálise com crianças é a psicanálise, afirmou Maud Mannoni. Esta máxima se confirmou em um atendimento infantil realizado por Jorge Forbes e Mayana Zatz, na Clínica de Psicanálise do Centro de Estudos do Genoma Humano – USP.

Emília tem nove anos. Sorridente, mostrava que estava trocando alguns dentes frontais. Penteada, balançava suas trancinhas com laço de fita nas pontas. Sentada, movimentava suas pernas no ritmo da sua fala.

Desde dezembro último, o pai vinha investigando junto a serviços de saúde o diagnóstico para as quedas e dificuldades motoras da filha, dentre elas, limitação em vestir uma blusa e subir e descer escadas. Desde os cinco anos, andava na ponta dos pés. O exame de DNA, realizado no Genoma, confirmou Distrofia Muscular do Tipo Cinturas, a qual se caracteriza por fraqueza predominantemente na cintura pélvica (quadris e coxas) e escapular (ombros e braços).

A entrevista teve dois momentos. No primeiro, o pai dizia da reclamação da escola, de que a menina não conseguia acompanhar as atividades pedagógicas e participar das aulas de educação física. Emília, ao ouvir acerca de sua vida escolar, respondia sem entusiasmo e com expressões bizarras, o que levava a pensar, que ela também apresentava um rebaixamento intelectual.

Diante do detalhamento das queixas referentes à vida de Emília feitas pelo pai, – abandono da mãe, impaciência e descuido da madrasta e briga das irmãs, como forma de protegê-la, Jorge Forbes pediu para que ela saísse da sala por um momento. De pronto a menina o fez.

Posteriormente, após despedir-se do pai, Forbes chama Emília de volta. Agora sem pai! – Disse o psicanalista. Tal gesto a surpreendeu. A partir desse momento, abriu-se outra cena na entrevista. O analista convidou-convocou o sujeito Emília a falar, na atemporalidade inconsciente e na aposta de que na criança também há um sujeito desejante que pode dizer e responsabilizar-se a partir do que fala.

Ao ser indagada a respeito do porquê da sua presença ali, ela respondeu: “Porque tinha que passar…”  Ah! Então aqui é lavanderia?! – perguntou o analista.  O riso espontâneo de Emília confirma o chiste.  Na sequência, ela conta seus medos: de se acidentar, de cair das escadarias da viela onde mora, de ver seu corpo despedaçado e ensanguentado. “Tenho medo de me arrebentar todinha. Já pensou andando de bicicleta, cair e quebrar a cabeça?” A estranheza com seu corpo distrófico é expressa no fascínio e temor com que conta sobre os filmes de terror a que assiste, especialmente a personagem da boneca Anabelle. “Quando vejo esses filmes, fico pegada no sonho. O pastor até rezou, mas eu não consigo dormir.”

Na sua fala franca, de gestos e expressões singulares, Emília foi revelando-se uma menina profundamente vivaz, esperta, vibrante e cheia de graça. Era outro registro, comparado àquele da criança do início da entrevista, capturada em uma inibição intelectual e embotamento afetivo.

Esta apresentação de pacientes mostrou a lógica da psicanálise, como a palavra toca o corpo e o vivifica, revelando o misto de medo e a satisfação, temor e gozo. Evidenciou que o nosso pensamento é construído com libido e afeto, daí, não se confirmar o aparente rebaixamento intelectual de Emília quando do primeiro momento da entrevista. Se ficássemos com o registro moralizante desse início, a fixaríamos em uma possível resposta depressiva e de inibição intelectual.

A psicanálise com crianças revela que o sujeito do inconsciente não tem carteira de identidade. A criança tem recursos de elaboração subjetiva e meios de lidar criativamente com suas angústias que, muitas vezes, são comprometidas pelas interpretações preconceituosas e intoxicadas dos adultos. Por deslocar com mais rapidez dos seus sintomas, a indicação de tratamento psicanalítico infantil é breve, a menor duração possível.

O analista com sua escuta e presença autorizou a fala de Emília, sem julgamento moral, legitimou a esquisitice e a estranheza, metáforas da percepção que por vezes ela tinha diante dos sinais e sintomas da distrofia em seu corpo. Espécie de soro antiofídico para as dificuldades mecânicas que seu corpo apresenta. Nessa sessão, uma mostra de uma análise inteira anuncia a direção do tratamento e deixa avistar as prósperas perspectivas da psicanálise que se iniciou. 

Liége Lise é psicanalista, membro do Instituto da Psicanálise Lacaniana – SP.