Por Alain Mouzat
O óbvio ululante é aquilo que todos recusam com a mais determinada cegueira e que acaba se impondo apesar de todos os esforços raciocinais
Dois filósofos brasileiros ajudaram-me a rever minha apreensão do mundo: João Saldanha e Nelson Rodrigues. Eles me apresentaram à compreensão de um mundo que não pertence às referências da república francesa e uma visão de um mundo em hemiciclo parlamentar e regulado pelo código civil: o Brasil é em forma de campo de futebol e obedece às flutuações das faltas apitadas por um juiz falível.
Como a ditadura militar resolveu escolher João Saldanha como técnico da seleção de setenta – a famosa? Foi jornalista, torcedor, fumante, “comunista” (como diziam na época, para marcar não o pertencimento ideológico, mas sim a faculdade humana de não arredar de suas opiniões). Vão dizer: sim, mas o tiraram. Tiraram, mas porque não cedeu na convocação de Dadá.
Nelson Rodrigues, por sua vez, é um forjador de conceitos de grande eficiência e clareza. Destacaria um: o “óbvio ululante”. O óbvio ululante é aquilo que todos recusam com a mais determinada cegueira e que acaba se impondo apesar de todos os esforços raciocinais e de todos os desvarios galopantes. Um exemplo?
Na sua crônica de 10 de junho de 1966, Nelson zomba da apresentação de uma psicanalista no programa de televisão do Otto Lara Resende a respeito da juventude de “nosso tempo”. A psicanalista tentou “explicar” o “problema da juventude” pela “culpa da sociedade e da família”. Nelson replica: esqueceram um ator principal, “o que está por trás da família, da sociedade, das gerações é um velho conhecido nosso, ou seja: — o homem”. Nelson continua: “Os sociólogos do Otto, os psicólogos do Otto, os educadores do Otto, os professores do Otto — ainda não chegaram ao ser humano e o ignoram com uma crassa e bovina teimosia. É preciso que alguém lhes escreva uma carta anônima, com o furo sensacional: — ‘O homem existe! O homem existe!’ E vai ser um susto, um pânico, um horror quando os citados especialistas perceberem que a besta humana está inserida na nossa paisagem.”
Ainda hoje a demanda em fornecer explicações, a ânsia de compreender – um crime exorbitante, por exemplo – mostra a dificuldade em se confrontar com o óbvio ululante, que João Saldanha e Nelson Rodrigues não se cansaram de reafirmar: a existência do homem. Há o homem.
Não por acaso, os dois são amantes do futebol.
Alain Mouzat é professor da Universidade de São Paulo, doutor em linguística, e psicanalista membro do Instituto da Psicanálise Lacaniana