Por Suelen Gregatti da Igreja
Mesmo que estejamos de acordo com a necessidade de deixar o “patrimônio mais valioso” aos nossos filhos, o que estamos chamando de “educação”?
Durante o tradicional pronunciamento de final de ano, em 29 de dezembro de 2013, a presidente da república, Dilma Rousseff, deu destaque ao papel da educação como investimento prioritário do governo federal. O curioso foi o lugar de onde decidiu falar, provavelmente, em busca de maior identificação com seus interlocutores. Apostando na razão sensível, ao invés de apresentar estatísticas e cifras, ela disse: “Como toda mãe de família sei que o patrimônio mais valioso na vida dos nossos filhos é a educação”.
Afirmações como estas são perigosas. Geram adesão imediata e nos fazem pensar que estamos todos falando da mesma coisa. Caminhemos um pouco mais devagar, entretanto. Mesmo que estejamos de acordo com a necessidade de deixar o “patrimônio mais valioso” aos nossos filhos, o que estamos chamando de “educação”? Exemplos podem ajudar a pensar.
Uma docente de uma universidade pública convidou uma aluna de graduação muito jovem para escrever um artigo juntas, com o objetivo não declarado de ensiná-lo a fazê-lo. A professora começou por montar o esqueleto do artigo. Abriu o arquivo com o material produzido até então e passou a separar o material que julgava relevante daquele que julgava apenas acessório. Com relação ao primeiro, passou a agrupá-lo em um único arquivo, mais ou menos na ordem em que, mais tarde, pretendia usá-lo.
A seu lado, a aluna começou a se angustiar. Sem dar atenção ao processo de montagem do raciocínio, queria, diretamente, trabalhar no que julgava ser a superfície textual. Irrequieta, dizia: “falta uma vírgula aqui”, “tem uma palavra repetida acolá”. Como ela julgava estar sendo muito útil, assustou-se quando a docente solicitou, enfática, que ela parasse de se distrair e prestasse atenção na tarefa. Que tarefa?
Impedida de “corrigir” o texto, coisa que ela julgava saber fazer, passou a olhar para a cena que se desenhava à sua frente. Foi a primeira vez em que se deu conta de que, para aprender a escrever um texto com lógica, era preciso mais do que amontoar palavras escritas de maneira correta e organizadas de modo a compor um simulacro de texto. Mas como é que se fazia isso?
Curiosa, passou a observar o modo como todo mundo escrevia, cotejando os métodos com os resultados. Acabou encantada com o modus operandi de uma garota ainda mais jovem do que ela. Interrogada a respeito do que a havia cativado tanto assim, disse que sua colega tinha colhido, ao longo de sua educação, quatro elementos altamente operacionais.
O primeiro era o desejo decidido. Antes de começar a escrever qualquer coisa, ela parava para pensar o que queria colocar no mundo. Sua decisão guiava o olhar a tal ponto que, em todo o material que via, selecionava apenas aquilo que lhe parecia merecer destaque. Não perdia um minuto que fosse com elementos secundários.
O segundo era a crueza. A mocinha tratava a página em branco do computador como uma superfície qualquer. Sabia que um rascunho era só um rascunho. Não perdia tempo com sacralizações. Assim, no calor do momento, escrevia frases como: “Atividade X: destacou-se por blá blá blá”.
O terceiro era o incompleto. Para ela, a falta de palavras era um fato impossível de ser contornado. Ao invés de tentar tamponar a incompletude do texto, tentativa esta que, certamente a tiraria do seu foco, ela partia diretamente para a paráfrase, para a metáfora, para a imagem eloquente.
O quarto era a lógica. Ao começar a escrever, seu foco era a estrutura do texto. Sua intenção era organizar as partes do texto, cronologicamente e hierarquicamente, para só depois, trabalhar em cada parte.
Juntas, estas duas cenas colocam a afirmação de Dilma em questão. Ao lê-las com a psicanálise, não seria mais exato dizer que o patrimônio mais valioso na vida de nossos filhos é a castração? Em caso afirmativo, resta pensar como a educação pode colaborar para ser um de seus agentes.
Suelen Gregatti da Igreja é pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisa Produção Escrita e Psicanálise – GEPPEP, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, onde cursa Doutoramento em Educação. Professora de língua portuguesa, é membro do corpo de formação do IPLA.