Por Dagmar Silva Pinto de Castro
Não há mais um saber ideal ou absoluto. Isso não ocorre por incapacidade de quem faz ciência, mas é a própria ordenação do mundo, afastado de seu sentido originário
“É vivendo meu tempo que posso compreender os outros tempos, é me entranhando no presente e no mundo, assumindo resolutamente aquilo que sou por acaso… que posso ir além”.
Maurice Merleau-Ponty
As mudanças estruturais que estão ocorrendo no século XXI, no âmbito da pós-modernidade, requerem repensar o repertório dos estudos prescritivos, forjados em um mundo moderno. A ciência explicativa esgotou-se face à complexidade da pós-modernidade. O laço social mudou nos últimos 40 anos, como diz Jorge Forbes. Vivemos em uma sociedade do ser humano “desbussolado” pela ausência das âncoras de uma modernidade pai-orientada. O capitalismo na pós-modernidade caracteriza-se como inconstante, em permanente revolução, capaz de se desmanchar no ar. Nas palavras de Jean Marie Gagnebin , “a experiência do trabalho e do passado coletivos (Erfahrung, no vocabulário de Benjamin) predomina sobre a experiência do indivíduo, isolado em seu trabalho e em sua história pessoal (…) a obtenção de uma memória comum (…) é hoje destruída pela rapidez e violência das transformações da sociedade capitalista”.
Na modernidade, esse engendramento da destruição e do desenraizamento são o chão para o afastamento do ser. Surge a nova divindade do indivíduo isolado, desgarrado, em um mundo “abandonado pelos deuses”. O desgarramento e desenraizamento social levam à construção de outros deuses, entre eles, o “deus” mercado. O ser humano passa a ser visto na dimensão de consumidor. O paradoxo é que, ao mesmo tempo em que o sistema capitalista possui em sua estrutura a destruição da memória coletiva e do sentido original do trabalho, surgem narrativas de um mundo regrado, conhecido e direcionado pela razão. É o solo onde a ciência moderna se constitui. Ela ascende no exato momento em que se deixa de pensar o ser em sua existência e passa-se ao seu controle por meio da docilização dos corpos.
Existia a crença de que a ciência moderna resolveria todos os males da humanidade. Não resolveu. Vivemos a insuportável adaptação social e a busca do que pode proporcionar alívio. É a sociedade excitada, complexa em sua exigente necessidade de estímulo constante. Mostra-se repleta de ‘choques visuais’, aplicados como injeções que tornam o sistema nervoso central dependente e viciado em sensações. São como drogas para suportar a erosão da sociedade pré-moderna com o desenraizamento social “que separou uma parte considerável de trabalhadores rurais de suas glebas, dos artífices de suas ferramentas…” como diz Christof Türcke. Esse processo é a gênese da condição moderna para o crescimento econômico e motor do capitalismo. Um problema existencial encoberto pelas narrativas do progresso. Para sobreviver a esse movimento se instaura a concorrência como mediação das relações humanas no trabalho, na família. Nas palavras de Türcke, “assim como a terra não mais é o centro do universo, o solo e o chão não mais garantem a produção dos víveres (…) tal não mais começa a transitar como se fosse um fantasma e se fixa nas evidências econômicas, familiares e sacras”.
Tem-se uma sociedade da aparência, onde não ser percebido significa estar de fora. Isso é como estar morto em um corpo vivo. Uma sociedade que não se organiza mais no modelo pai-orientado, hierarquizado, em termos psicanalíticos. Uma sociedade em que se procura compensações para suprir uma rotina pobre de experiências em virtude da perda da apalpabilidade de se perceber, por meio de um corpo-existência. Corpo que se transformou em Körper (visto como objeto pela ciência), distanciando-se do Leib, corpo como vivido próprio.
Não há mais um saber ideal ou absoluto. Isso não ocorre por incapacidade de quem faz ciência, mas é a própria ordenação do mundo, afastado de seu sentido originário. Realidade multifacetada com a ruptura do laço social, que impregnou a modernidade do domínio do Um (absoluto) como manutenção do próprio sistema capitalista. Um retorno ao que é próprio do ser humano – como corpo encarnado – permite saber-se na incompletude. Até então, a completude era apregoada por meio da linguagem do possível, do progresso, do sucesso ilimitado. São narrativas da modernidade retroalimentando um modelo de capitalismo que está em esgotamento em sua versão predatória, flexível e irregular. Esse isolamento exacerbado exponencia-se na pós-modernidade, com o indivíduo isolado, desgarrado, cindido em um corpo objeto e reduzido a sensações. Trata-se, assim, de compreender a experiência humana na mudança organizacional, nas tensões relacionais, encarnada na existência humana, atuando fora do esquema explicativo de tipo causal. É alargar os sentidos de uma “ciência que manipula as coisas e renuncia a habitá-las”, como afirma Merleau-Ponty. É distanciar-se de uma ciência que sobrevoa a vida sem nela embrenhar-se. É o deslocamento do pensamento científico para o solo seguro e confiável da experiência do que é a nossa vida. Corpo que habita o mundo numa historicidade primordial. Essa é uma das possibilidades de sair da posição de refém do presente e reinventar o futuro da gestão da mudança organizacional. É abrir-se em liberdade e responsabilidade pela escolha de ser corpo-existência, entrelaçado nas contradições da vida humana e em uma história não linear. Somos desafiados a ir além de uma existência fascinada, mergulhada na sociedade excitada e em um mundo mutante.
Dagmar Silva Pinto de Castro é docente do Programa de Mestrado e Doutorado em Administração da UNIMEP
Publicado em O Mundo visto pela Psicanálise, ed. 170 – 28 de outubro de 2016
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