É proibido morrer 29/08/2013

Por Italo Venturelli

A angústia que a morte suscita pede um silêncio nas explicações, difícil de suportar. Ninguém a aceita. Por mais que se espere, a morte é sempre uma surpresa 

É proibido morrer; caso isso aconteça, doutor, você será processado. É proibido morrer em casa, pois se acredita que existe um lugar melhor equipado, o hospital, com pessoas desconhecidas e assépticas ao seu redor. É proibido morrer no pronto-socorro, pois deveria ter sido no Centro de Terapia Intensiva – CTI. É proibido morrer no CTI de hospital do interior, pois deveria ter sido transferido para a capital. É proibido morrer no hospital de excelência, pois é por isso que se paga pelo melhor plano de saúde. Consequentemente, tem-se os melhores médicos. É proibido morrer, porque alguém demorou em pedir ajuda. É proibido morrer sem aqueles tubos enfiados pelo corpo. É proibido morrer sem estar usando uma centena de medicações injetáveis. É proibido alguém morrer, porque para tudo tem remédio. É proibido morrer, porque a medicina pode tudo e paga-se o preço.

Uma estimativa da Organização das Nações Unidas (ONU) aponta que 102 pessoas morrem, por minuto, em todo o mundo. A questão é: como se morre hoje? Se um médico plantonista atender um paciente idoso, mesmo em fase terminal de qualquer patologia, acabará conduzindo esse paciente a uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Indicação médica? Muito mais exigência dos familiares e uma atitude de defesa que o médico assume devido à judicialização da medicina. E o paciente, qual é sua escolha?

O Conselho Federal de Medicina já estabeleceu critérios para internação em unidades de tratamento intensivo. São protocolos estudados e implantados em serviços de UTI. Existem protocolos para tratamento de doenças terminais e para pessoas em idade avançada, com falência de múltiplos órgãos. São os chamados cuidados paliativos. Mas, fica a questão: como colocá-los em prática? Nossa sociedade acredita na máxima de que para tudo tem remédio; portanto, logo após o primeiro atendimento a um idoso ou terminal, algum parente vai perguntar: a que horas será feita a tomografia? A procura de exames, a busca de um motivo, de uma explicação ou de um culpado é sem fim. Qual a decisão de quem está submetido a essa manipulação?

Encaminhar ou não para a UTI? Nesse momento os protocolos ficam em segundo plano. Algum conhecido vai sugerir: entubação, sedação, o atendimento com todos os especialistas. Esse fato ocorre normalmente pela pessoa mais distante do paciente. Aquele que há muito nem se recorda e nem sabe muito bem o que está acontecendo. Parece uma maneira de dizer aos outros: estou aqui dando atenção e “fazendo de tudo”. Começa a saga do plantonista, pois vai ter que dar entrevista a centenas de parentes, de várias regiões do país, até alguém perguntar se pode transferir o paciente para um hospital melhor. E a resposta, via de regra, é “sim”.

O fato é que mesmo nos melhores hospitais essa saga também vai se repetir. Sempre haverá um pedido de um exame a mais. Sempre a tentativa do “se”, e aquela negociação infindável com a morte. Comum, também, é a procura de um culpado. Alguém não deu atenção devida em casa. Ou foi a cuidadora que atrasou na hora de dar a medicação ou demorou a pedir ajuda ou o médico que tardou a atender ou a secretária que não passou a pessoa na frente dos outros ou o plano de saúde que é ruim… ou ou ou… Existe sempre uma tentativa de se encontrar um culpado pela morte. Afora as surpresas inesperadas, existem pacientes que já se encontram em fase terminal de sua vida, quer por patologia, quer pelo limite imposto pela idade. A angústia que a morte suscita pede um silêncio nas explicações, difícil de suportar.

Jorge Forbes nos diz: “não há problema que uma falta de solução não resolva”. Se para tudo houvesse remédio, seria possível traduzir universalmente a essência do ser humano numa bula que nos decifrasse completamente. A posição psicanalítica é a de que para a vida e para a morte não há remédio. O sentido da vida é uma invenção construída sobre a morte, que escapa ao sentido e à compreensão.

No que tange à morte, melhor recorrer aos poetas do que aos médicos. A você, que se despede de mim, leve meu amor, de mim quando me despedir de você fica meu carinho e saiba que, sem você, meu mundo é diferente, minha alegria é triste. Por você, poder morrer de amor e de saudade, mas poder sentir o momento, o limite, o não saber, o sonho, o humano do ser.

Italo Venturelli é neurocirurgião, psicanalista e Diretor do Hospital Regional do Sul de Minas Gerais