Dos nervos à flor da pele ao primeiro orgasmo 26/09/2013

Por Liége Lise

Para além das limitações do corpo biológico, o desejo inconsciente surge com maior força quando o analisando nomeia os anteparos por meio dos quais se esconde dele

Das Dores, 51 anos, é uma mulher bonita. Tem um sorriso iluminado e bom gosto para se vestir. Foi encaminhada pelo neurologista que a acompanha no Hospital das Clínicas ao Centro de Estudos do Genoma Humano – USP – para testagem genética de ELA e Atrofia Muscular Progressiva, uma vez que apresentava fenômenos motores de difícil diagnóstico. Eles a haviam levado a passar os últimos oito anos de vida em função da doença e da busca de um nome para a mesma. Sentia fortes câimbras, acompanhadas de dores nas pernas, que migravam para os membros superiores e o pescoço, provocando enrijecimento e paralisias, principalmente no lado esquerdo do corpo. Já havia feito três eletromiografias e os resultados eram inconclusivos. Externava preocupantes sinais de irritação, choro, tristeza e angústia.

Na entrevista na Clínica de Psicanálise do Centro de Estudos do Genoma Humano da USP, com Jorge Forbes e Mayana Zatz, afirmou: “não sei o que eu tenho… vir fazer esses exames… isso tudo me deixa muito irritada, fico com os nervos à flor da pele… Meu caso é bronca, doutor!”.

Ao estabelecer a direção do tratamento, Jorge Forbes destacou dois aspectos a serem privilegiados: a passividade da inércia histérica, expressa na espera inerte por um diagnóstico, e a identificação à “santinha”, de caráter deslibidinizante e sem erótica, que contribuía para que ela se visse, narcisicamente, como a meiga, vitimada pelos acontecimentos da vida e desimplicada nos seus sintomas.

Quando do nosso primeiro encontro, ao falar sobre o começo dos seus sintomas, Das Dores disse que os mesmos começaram quando ela tinha seis anos de idade. Relatou que seu pai também tinha uma dor na perna esquerda. Ele havia servido na guerra e tinha pisado em um campo minado. Ela lembrava que o pai sempre se queixava dos incômodos decorrentes dos estilhaços que lhe atingiram. As suas dores nas pernas remetiam a uma identificação a esse traço paterno.

Das Dores foi casada durante 25 anos. O marido, técnico em computação, a traía com várias mulheres. Referia-se a ele como um bruto, ciumento e obcecado por ela. Dizia que não sentia prazer nas relações sexuais e inventava desculpas para se furtar desse encontro. Contou da sensação de um “motorzinho” que tremia dentro dela, na região do quadril e do ventre. Narrou que tal sintoma teve início quando seu marido comprou um computador. Certa vez deparou-se com conversas em sites pornográficos na impressora. “Eu fiquei com tanta raiva que nem podia chegar perto de computador”, relatou ela. Visando a incidir sobre o sintoma de conversão e na somatização das emoções recalcadas, pontuei: “Então, seu marido trouxe um computador para casa e você ligou uma máquina aí dentro”. 

Avalio que o ponto de virada desta análise se deu quando da nomeação do diagnóstico de “histeria”, mostrando a Das Dores como essa defesa, uma resposta tão pouco criativa, lhe gerava mais sofrimento psíquico e paralisia do que ser “portadora de doença degenerativa”. Aproveitando-me da reiteração da sua queixa pela ausência de um diagnóstico, pontuei: “Suas dores, o motorzinho e as câimbras estão relacionados com o seu casamento.” Ela ponderou: “o curioso é que eu sinto essas dores diante de emoções boas e ruins.” Foi aí que intervi: “Razão para concluir que seu diagnóstico é histeria”.

Ao escutar esta nomeação, ela questionou: “E essas câimbras, a dor no tendão, a perna que fica endurecida e não consigo andar? É uma dor fina e intensa. Eu queria fazer um exame que dissesse o que é”. Fechei a questão: “São sintomas, não necessariamente é a doença.” Das Dores ficou curiosa, “Sintomas sem a doença… O que é histeria?”. Explicando-lhe, afirmei: “É fazer o corpo de porta-voz, é expressar no corpo um sofrimento subjetivo”.

A nomeação do diagnóstico de histeria provocou efeitos na paciente, salientando-se a alteração da forma de lidar com o sofrimento corporal e a satisfação que dele obtinha. Deixou de quebrar as coisas dentro de casa, passou a falar e se fazer ouvir sem precisar gritar. Encaminhou judicialmente o divórcio. Foi para o Rio Grande do Sul buscar o que era seu, no caso, um carro. Ao relatar esse episódio afirmou: “Enfrentei situações que jamais imaginei que conseguiria enfrentar. Naquela noite, não tive as câimbras… Eu dizia: vai ser assim, porque agora eu quero”.

Das Dores começou a namorar um engenheiro, 50 anos, divorciado, que conheceu pela Internet. Foi para o Espírito Santo passar um final de semana na praia com ele. Chegou, na terça-feira, radiante na sessão: “Não sei se foi orgasmo, doutora, mas eu nunca tinha sentido isso antes, foi muito bom. Jamais imaginava que iria viver algo assim aos 51 anos. Eu acho que to apaixonada,” disse sorrindo. “Não senti as câimbras, elas estavam pertinho, estavam rondando, mas não chegaram”, ponderou. “É… você foi para o Espírito Santo e teve um encontro divino,” equivoquei.

Quanto aos resultados dos seus testes genéticos, ela os recebeu das mãos da Dra. Mayana Zatz, o resultado deu negativo para os genes de ELA e Atrofia Muscular Progressiva. Esse caso mostra que para além das limitações do corpo biológico, o desejo inconsciente surge com maior força quando o analisando nomeia os anteparos por meio dos quais se esconde dele e arrisca se surpreender.

Liége Lise é psicanalista. É membro do IPLA- Instituto da Psicanálise Lacaniana- SP