Doenças neuromusculares, psicanálise e serelepe 29/11/2012

Por Mayana Zatz

 Mayana Zatz, professora titular de genética da Universidade de São Paulo, relata na revista VEJA on-line sua experiência com a psicanálise

O que essas três coisas têm em comum? Vamos lá. Como vocês sabem, trabalho com pacientes e pesquisas em doenças neuromusculares (DNM) há muitos anos. Só para terem uma ideia já atendemos mais de 25.000 pessoas afetadas desde que essas pesquisas foram iniciadas. A partir de  2000 as famílias vêm sendo atendidas no Centro do Genoma Humano da USP. Estabelecer um diagnóstico de DNM, dizer a um paciente ou aos seus pais – no caso de uma criança –  que trata-se de uma doença progressiva para a qual ainda não há cura é sempre um choque. Passado o susto inicial, algumas pessoas aprendem a lidar com isso de maneira admirável: sem queixas, sem afastar-se do convívio social,  sem perder o bom humor ou  a alegria de viver. Adoro conversar com essas pessoas. Elas me enchem de entusiasmo e de uma motivação para continuar nas pesquisas. Mas para alguns, aprender a conviver com uma doença neuromuscular pode ser muito difícil. O fardo a ser carregado às vezes parece pesado demais. Outros, após uma revolta inicial, entram em um quadro depressivo, de resignação ou de alienação. E é aí que entra a psicanálise. Desde 2006 estabelecemos uma parceria com o IPLA (Instituto da Psicanálise Lacaniana ) presidido pelo psicanalista  Jorge Forbes Tudo começou quando Jorge Forbes me ligou e perguntou: “Você acredita no determinismo genético?” “Claro que não. Quem te falou uma besteira dessas?”, foi minha resposta imediata. “Então podemos estabelecer uma parceria”, retrucou Jorge Forbes. “Acredito que a psicanálise poderá ajudar os pacientes e as famílias com DNM que vocês atendem no Centro do Genoma. Vamos tentar”? Confesso que fiquei dividida. Como reagirão os nossos pacientes com a proposta? Será que vão achar que os julgamos loucos? O que será que esse Jorge Forbes vai dizer aos nossos pacientes? Mas, além da vontade de tentar ajudar nossas famílias, o espírito científico prevaleceu. Precisava ver para crer.  E iniciamos essa parceria. Na primeira consulta o atendimento era (e continua sendo) sempre feito por Jorge Forbes e a minha pessoa, muitas vezes uma presença silenciosa. Em seguida o paciente é atendido por alguém da fantástica equipe de psicanalistas orientados por Jorge Forbes e revemos o paciente três meses depois. E é aí que entra  SERELEPE. SERELEPE é o livro escrito por Edione de Castro Souza e que acaba de ser lançado Edione foi uma das primeiras pacientes atendidas por Jorge Forbes e sua equipe no Centro do Genoma. Ela tem um tipo de distrofia chamada de cinturas – que afeta as cinturas escapular e pélvica, causando perda muscular e fraqueza nos braços e pernas. Hoje, Edione, que tem 49 anos,  depende de uma cadeira de rodas para se locomover. Na primeira consulta duvidei que a psicanálise ou qualquer outro tratamento pudesse alterar o sentimento de “tudo é difícil” que emanava de  Edione. Ela estava contaminada pelo vírus que Jorge Forbes  apelidou de RC: resignação e compaixão (segundo ele, em homenagem discreta, também, a Roberto Carlos). Forbes inventou um tratamento psicanalítico de choque contra o vírus RC, batizou-o de  “Desautorizando o sofrimento prêt-à-porter”. E o choque já é na primeira consulta. A técnica é tirar o paciente da zona de conforto. Deixá-lo profundamente incomodado, com a pulga atrás da orelha. Para mim é sempre uma surpresa. Nunca sei onde o Dr. Forbes irá “cutucar”. Mas os resultados que venho acompanhando com inúmeros pacientes têm sido surpreendentes. O livro SERELEPE que Edione, aquela que achava tudo muito difícil, acaba de escrever é uma prova disso. “No sertão do Ceará, num sitio chamado Jatobá, cresceu uma menina de pernas finas e magrinhas” É assim que Edione resume sua narrativa na contra-capa do livro. E continua…. “Mesmo com as ordens severas de seus pais, cultivou em si um espírito arteiro, capaz de fazer arrumações de todos os tipos, travando um duelo com seus medos  para alcançar seus sonhos. Mas quem é essa menina que sobe em pé de laranjeira para pegar, bem no alto dos galhos, a última laranja? Vestindo-se de uma serelepe sem tamanho, esquecendo-se dos espinhos que fincavam em sua pele, e mesmo com o medo de rasgar o seu último vestido já remendado, Serelepe sobe ligeira, determinada a saborear as poucas gotas que a laranja, já amarelada, poderia lhe dar. Subiu, com o desejo e a persistência de vencer, com seu corpo franzino, desviando dos enormes espinhos da laranjeira da vida. Tropeçando, mas sem cair jamais. Não vou contar o resto…. Leia o livro e divirta-se.

*Texto publicado originalmente na Veja Online