Do Mix cultural, das múltiplas formas de trabalho em rede e da responsabilidade pelo que não se sabe 20/10/2016

Por Dorothee Rüdiger

Esse texto foi apresentado nesta semana, 18/10/16, por solicitação de Jorge Forbes, em seu curso semanal, que trabalha atualmente as consequências do pós-humanismo na subjetividade humana e a posição da psicanálise.

Não se ganha mais o pão do jeito que se ganhava o pão antigamente.  Ainda meio século atrás, não havia computadores que cabiam na palma da mão, a rede com seu tráfego de dados era para poucos, um telefone era um objeto de luxo e os robôs eram  criaturinhas esquisitas  que povoavam  estórias de ficção.  Trabalhava-se em instituições, isto é, em empresas ou no serviço público,  cujo princípio organizacional era a hierarquia, e que dividiam o dia em jornada de trabalho, horas de descanso e horas de  lazer.  Não se sabia o que era just in time e outsourcing   e nem se imaginava o que era uma start-up ou o que era  co-working . Um “anjo” era um ser celeste alado e não um investidor em ideias inusitadas. A maneira como trabalhamos ,  hoje, está intimamente ligada às mudanças dos laços sociais que testemunhamos de meio século para cá  e  que transformaram radicalmente o jeito de ser  na vida amorosa e  no trabalho.  Se Eros não é mais o mesmo,   Ananke também não é mais,  podemos dizer parafraseando Sigmund Freud.

Ainda em meados do século XX, a sociedade era orientada nas grandes figuras paternas, era “pai-orientada”, como diz Jorge Forbes.  À frente da família encontrava-se o pai provedor e orientador  para a vida em sociedade. Tal como o pai, o empresário estava à frente da empresa, na qual se entrava como aprendiz ou estagiário para depois praticar uma profissão vitalícia. As relações de trabalho eram estabelecidas para durarem uma vida. Durante a Ditadura Militar, no Brasil, as antigas  Carteiras de Trabalho e de Previdência Social continham uma frase edificante do então Ministério do Trabalho, no sentido de que a carteira poderia evidenciar quem era um bom trabalhador ou quem “ feito macaco, pulava de galho em galho”.  Ainda até os anos 70 do século passado,  as relações de trabalho eram moldadas segundo o fordismo com sua disciplina fabril.  Estava claro, quem dava as ordens e encontrava por parte do trabalhador obediência. Estava nítido quem pertencia ao staff encarregado de projetos e planejamento e a quem cabia a execução desses projetos.  O trabalho era fragmentado entre os executivos e os “peões”.

Essa forma de se ganhar o pão (e a mortadela) encontrava nas normas jurídicas, até hoje em vigor, sua forma de regulamentação.   Na Consolidação das Leis do Trabalho  – CLT  encontramos no art. 2º a empresa  fordista como protótipo do empregador a quem cabe a direção da prestação de serviços  subordinados e pessoais do empregado, como manda o art. 3º da CLT.  O empregado recebe e  executa  as ordens de serviço sem poder questionar seu sentido, a não ser que queira se arriscar de parar no olho da rua por justa causa. Poder e subordinação são até hoje o cerne da relação de emprego, uma relação que é, como diz a lei, personalíssima.  Subjetivamente, o empregado se vincula à empresa como o filho se vincula ao pai. Consequência da indisciplina é a culpa que traz consigo o “castigo” da aplicação de medidas disciplinares previstas na própria lei.

No entanto,  no modelo fordista, o poder do empregador é limitado não somente pela lei, como também pela normas coletivamente negociadas com os sindicatos.  Duração da jornada, salários e normas a respeito de como o serviço é prestado são objetos de convenções ou acordos coletivos. A paulatina melhora das condições de trabalho e, principalmente, o aumento do nível salarial coletivamente negociado, deve possibilitar o consumo de bens duráveis por parte dos próprios trabalhadores.  Carros, eletrodomésticos, a casa própria e a mobília são adquiridos com os salários reajustados de período em período. Assim, não só se reconstruiu a economia do primeiro pós-guerra, como também do segundo pós-guerra,  nos países industrializados. Sob esse princípio,  industrializaram-se países tradicionalmente agrários, como era o caso do Brasil.  À disciplina no trabalho correspondia a disciplina da poupança. Só se podia “gastar o que se tem”, como se pode apreender com David Harvey  em Condição Pósmoderna. Implicava a disciplina do corpo do trabalhador que lhe possibilitava a satisfação futura de suas necessidades, como diz Jorge Forbes em Inconsciente e Responsabilidade .

Esse mundo do trabalho entra em crise a partir dos anos 60 do século passado. A crise tem várias feições. Afeta os costumes, a política, a economia, a arte, enfim a vida como um todo no mundo todo.  No plano econômico podemos citar a  crise do petróleo em razão da queima desenfreada de combustível fóssil e a crise dos mercados de consumo nos Estados Unidos e na Europa. Na política global aparece a crise ambiental em razão da poluição do ambiente dos países industrializados e do descumprimento das promessas políticas dadas aos países em desenvolvimento de que a industrialização iria trazer a suas populações  o bem-estar dos países desenvolvidos. No cenário politico ainda merece ser citada a crise  que atingiu os Estados Unidos   causada pela guerra do Vietnam.  Não por último, é importante citar a  posterior crise econômica e política da União Soviética  que não conseguia  manter seu pesado Estado .

Mas, crise também chama criatividade. Sinais de que o mundo ia mudar já se desenhavam no horizonte das artes desde o final dos anos 50. A quebra de paradigmas estéticos, de acordo com David Harvey, percebe-se na arte marcada pela decomposição e recomposição de diversos estilos em colagens, no mix de culturas presentes no Rock n´ Roll que,  a partir de então, liberou uma incontável produção de estilos de música. Pode-se citar,  ainda, o desmanche da música,  composta tradicionalmente  pela oitava, que levou à invenção da música eletrônica.  Nesse ambiente cultural  questiona-se  a segregação racial no movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos, o autoritarismo pelo movimento estudantil de 1968, a dominação social exercida pelos homens  no movimento feminista global, a obrigação de seguir um padrão de sexualidade, o império da moral sexual patriarcal, a verticalidade das relações sociais  e assim por diante.  Grandes ideais são desconstruídos, tal como vaticinava Friedrich Nietzsche.  Abrem-se as fronteiras para a globalização. Cai, enfim, o Muro de Berlim, fronteira de separação entre dois mundos.

A psicanálise lacaniana faz parte dessa história. Sensível à crise e às mudanças culturais dos anos  60 e 70, que, principalmente, põem em xeque a onipotência das grandes figuras paternas, Jacques Lacan constrói sua segunda clínica além do Édipo. Se na sociedade industrial moderna o simbólico dominado pela instauração da lei pelo pai era importante para alguém se  arranjar com o poder norteador do pai, agora o Real da crise da nascente globalização fazia surgir  os outros laços sociais que  exigiam uma mudança de enfoque também na psicanálise: do pai e da sua lei  para o Real sem lei, da sexualidade centrada no gozo masculino para o outro gozo da sexualidade feminina,  da verdade para a invenção de um estilo de vida. A psicanálise na  sociedade pós-moderna, na qual se insere,  é uma obra em construção “como a Sagrada Família de Gaudí” , diz Jorge Forbes.

Diante disso, pode-se  constatar o fim dos grandes ideais, das “grandes narrativas”,  como quer o filósofo Jean François Lyotard: da verdade como grande questão da  ciência, do belo, como ideal da arte e da justiça como fim último do direito. Cederam às “pequenas narrativas” que ganham corpo no direito numa rede de contratos estabelecidos ad hoc para dar conta de estabelecer as regras que valem de forma limitada para resolver necessidades momentâneas. “Tudo que é sólido, desmancha no ar,” já diziam Karl Marx e Friedrich  Engels em 1848 sobre o movimento da modernidade industrial. 

O  inacabado, a  flexibilidade e, por que não, a liquidez, como quer outro filósofo contemporâneo, Zygmunt Bauman,  caracterizam também as relações de trabalho contemporâneas reorganizadas pelo toyotismo.  Como diz o nome, o toyotismo é um princípio de organização empresarial originalmente aplicado na empresa Toyota.   De acordo com esse princípio, a  empresa estabelece as relações de trabalho mantendo, por um lado, um núcleo de trabalhadores altamente especializados na própria empresa principal e, por outro lado, recorrendo sistematicamente a uma rede de empresas terceirizadas fornecedoras de peças ou serviços. Do ponto de vista das relações jurídicas,  que se criam e recriam de acordo com as flutuações do mercado, as empresas, hoje, recorrem a uma diversidade de possibilidades de contratação de trabalho. Para a contratação de trabalhadores no núcleo da empresa é mantida a forma de contratação ao modo antigo, isto é, contrata-se, no Brasil,  pelo padrão estabelecido na CLT.  Porém, as condições de trabalho, tais como o valor do salário e a jornada de trabalho são flexibilizados pela negociação coletiva em vários níveis. Esses níveis abrangem desde o estabelecimento, o “chão da fábrica”, até a organização global de empresas transnacionais que negociam condições globais de trabalho com sindicatos internacionais. 

 Para  se beneficiar do trabalho prestado por outras empresas,  as empresas centrais recorrem ao contrato de fornecimento cujas cláusulas são via de regra predeterminadas pela empresa cliente. Há anos fala-se em “empresas proletárias”. Essas empresas não precisam ser pequenas.   Até médias e grandes empresas do ramo têxtil, por exemplo, são dependentes das grandes redes de distribuição, tais como C&A, Marisa, Renner e  Zara.  As empresas e até órgãos públicos terceirizam, hoje, serviços de limpeza , manutenção e segurança, tidos como não essenciais para a realização de sua atividade principal. São, na linguagem do Tribunal Superior do Trabalho, as “atividades meio” que podem ser prestadas por empresas especializadas no ramo.  Há ainda outras formas de relações triangulares de trabalho, tais como a prestação de serviços por cooperativas e sindicatos de trabalhadores avulsos. 

Outra forma atual de recorrer a prestadores de serviços  é a contratação de trabalhadores “pessoas jurídicas”. Essas pessoas não são sujeitas ao  poder de mando da empresa contratante  e têm, portanto, relativa autonomia para prestarem seus serviços. Inicialmente utilizada para burlar a aplicação da legislação trabalhista, a contratação de mini empresas é percebida por muitos jovens, hoje,  como oportunidade  para sua start-up começar a vida no mercado.   Pois, com os recursos da tecnologia da informação,  as mais variadas formas de se trabalhar são utilizadas para produzir em rede.  Pouco importa quem produz bens ou serviços, tampouco importa onde no mundo se produz.  Com a internet todos estão interligados a uma rede que permite  o trabalho em rede  e sua coordenação por grandes empresas centrais. Passamos da disciplina patriarcal da fábrica para o controle invisível e flexível da Matrix . Há uma vantagem sistêmica na Matrix. Adaptar-se às flutuações do mercado , pode melhorar a prestação de serviços especializados e proporcionar, principalmente, o crescimento de start-ups que investem na criatividade, antes barradas pelos limites do planejamento fordista. Há,   portanto, uma inovação constante do sistema como um todo.

Mas, há um lado “B”.  Há o dumping social denunciado pela Organização Internacional do Trabalho e outras organizações governamentais e não governamentais que atuam na questão do trabalho.  O dumping social ocorre, quando não só se terceiriza, mas “quarteiriza” e “quinteiriza” o trabalho e se relega o risco da atividade econômica a empresas que exploram  trabalho escravo ou análogo à escravidão.  O recurso a trabalho escravo ocorre no mundo inteiro. Segundo  estimativa da OIT, há,  atualmente,   em torno de 30 milhões de escravos no mundo.  Na Alemanha, onde há uma rígida fiscalização do trabalho, tinha em 2013, de acordo com o jornal  conservador Die Welt , em torno de 10 mil escravos, principalmente nos setores da construção civil e do trabalho rural.  Na Europa trabalham, segundo estimativas da OIT, atualmente,  um milhão de pessoas em condições análogas à escravidão.

Para a OIT, o Brasil é um modelo de resposta jurídica ao problema do trabalho análogo ao da escravidão. Desde os anos 90 do século passado, atuam, no Brasil,  os Grupos Móveis de Fiscalização do Trabalho. São juízes, procuradores do trabalho, fiscais do trabalho, advogados e representantes da sociedade civil que detectam e visitam empresas clandestinas e  resgataram  trabalhadores sujeitos a condições sub-humanas de trabalho. Essas condições de trabalho encontram,  no Brasil,  sobretudo no campo, mas também  na indústria têxtil e na construção civil. Quem sujeita os trabalhadores a condições análogas à de escravidão explora  a  ignorância, a fragilidade econômica ou a situação de refúgio clandestino.  Famílias inteiras de trabalhadores bolivianos, por exemplo,  trabalham em fábricas  clandestinas em São Paulo, cujas condições de trabalho lembram as descritas pelos médicos do trabalho ingleses no início do século XIX. 

Os Grupos Móveis de Fiscalização do Trabalho aplicam para quem se beneficia desse tipo de trabalho  a “teoria do domínio do fato” , criada durante o “processo do mensalão” . De acordo com essa teoria,  não  há  como alegar desconhecimento de fatos para se eximir de responsabilidade pelo que acontece na rede de produção e na cadeia de fornecimento de matéria prima. A empresa é responsável pelo que ocorre aos trabalhadores e também ao  meio ambiente natural.  Quem se beneficia da rede, é,  muitas vezes,  apesar  de cumprir o dever da eleição adequada das empresas parceiras, responsável por aquilo que não sabe.

 Essa nova responsabilidade  corresponde à  responsabilidade psicanalítica,  descrita  por Jorge Forbes em Inconsciente e Responsabilidade, e que implica o analisando “pelo encontro e pelo acaso”.   É uma responsabilidade que vai além da responsabilidade delimitada  pela norma jurídica,  opera  além do dever  moral.   Essa responsabilidade pelo acaso  aplicada às relações de trabalho implica uma nova ótica do direito do trabalho. Se antes o planejamento fordista  restringia a responsabilidade empresarial à correta aplicação da lei e dos contratos,  hoje,  a flexibilidade  toyotista das relações de trabalho  tem como consequência a exigência de  uma tomada de atitude:  de bancar o que escapa das malhas da rede,  de bancar, em outras palavras, o  que Jacques Lacan chama de Real. 

Dorothee Rüdiger é psicanalista e doutora em Direito pela Universidade de São Paulo

Publicado em O Mundo visto pela Psicanálise, ed. 169 – 21 de outubro de 2016

Deixe um comentário