Por Teresa Genesini
Antes achava que precisava da minha mãe para viver, depois achava que a solução era ter alguém para dormir e acordar comigo. Agora sei que sou eu o responsável, eu é que tenho que estar bem
Na Clínica de Psicanálise do Centro de Estudos do Genoma Humano – USP, dirigida por Jorge Forbes, atendemos pacientes portadores de distrofia muscular e seus familiares. Embora o diagnóstico da doença seja um golpe, constatamos que o sofrimento geralmente tem outra causa, e a distrofia funciona como uma justificativa padrão.
Steves, paciente com Distrofia Miotônica de Steinert, é encaminhado porque estava com depressão – uma espécie de desvitalização melancólica – pela morte repentina da mãe. Chegou a ficar 20 dias sem tomar banho, sem ânimo para nada. Conta, na entrevista inicial com Forbes, que duas imagens não saíam de sua cabeça: a mãe entubada no hospital e depois, deitada no caixão. Passava os dias no cemitério sentado no túmulo da mãe, sem comer e chorando. Forbes o interpreta: Você está definhando. O Steinert não faz você ficar no cemitério; isso é uma opção do Steves.
Na semana seguinte, Steves compareceu para a segunda entrevista com Jorge Forbes. Relatou um sonho com sua mãe – um rádio-sonho, pois não a viu – em que apenas ouviu sua voz que lhe dizia para não mais ficar no cemitério e nem chorar por ela, que a deixasse em paz. Afirmou sua posição: queria se tratar. A intervenção do analista funcionou como um bisturi que tocou o ponto de gozo – o surpreendeu e o deslocou; abriu a possibilidade para o tratamento.
Nas primeiras sessões, Steves continua a queixa pela perda da mãe. Depois, ao dizer que gostava de contar piadas, peço que me conte alguma. A partir de então, conta uma piada a cada sessão, até que um dia, ao sair, esquece a bengala. Quando volta para pegá-la, diz: Logo vou conseguir entrar aqui sem bengala. Através do humor, do chiste, desloca-se o gozo do sofrimento pela perda da mãe para o “contar piada para a analista”.
Antes magro e abatido, aos poucos retoma o gosto pela comida e por cozinhar. Um dia chega com um presente: um pedaço de torta de frango, uma de suas especialidades.
Steves relata um sonho com sua mãe: está bonita, diz que está bem e recomenda que ele também fique bem. Agora as imagens dela no hospital e no caixão estão indo embora, vou ficar com essa imagem do sonho, diz. Começa a contar quanto falta para terminar o luto de um ano. Intervenho: “Por que não diminuir esse tempo? Por que não 9 meses?” A resposta: É mesmo. Vou mandar rezar uma missa de 9 meses e começar vida nova.
Começa fisioterapia e participa das festas de final de ano da clínica. Conta que está se desapegando de muita coisa: doa móveis velhos, faz uma grande faxina, troca coisas de lugar e muda o visual da casa. Fiz uma reviravolta em casa. “E quais são seus projetos?” Responde que gostaria de voltar a estudar – quer fazer curso de informática. Faz curso preparatório e é aprovado.
A reviravolta continuou também no campo amoroso: Estou fazendo uma reciclagem na minha vida, um balanço – onde errei, o que foi bom, não quero começar relacionamentos só para não ficar sozinho. Antes achava que precisava da minha mãe para viver, depois achava que a solução era ter alguém para dormir e acordar comigo. Agora sei que sou eu o responsável, eu é que tenho que estar bem; não estou mais carente.
Na última sessão ele relatou um terceiro sonho com a mãe – segundo ele, o melhor de todos que já teve: Eles se encontraram numa festa e Steves a abraçou tão fortemente que machucou o bico do peito da mãe. Ela estava feliz e disse para ele ser feliz também.
Antes de sair fez um depoimento: Doutora, foi muito bom para mim esse tratamento. Se eu não viesse aqui, hoje eu não estaria vivo. Quando eu precisar falar, marco uma consulta ou então venho para lhe trazer um “escondidinho”.
A modificação na vida de Steves foi sair do estado de definhamento para aumento da libido, gosto pela vida. Fez a passagem da melancolia à elaboração do luto pela perda da mãe. Steves abriu-se para a vida; o encontro com a psicanálise deu nova perspectiva a ele.
Passados seis meses, a médica clínica do Genoma, me procura preocupada porque Steves não veio fazer o controle da distrofia; não conseguia falar com ele – estaria deprimido? Falo com ele, que me diz: Doutora, a senhora me achou por acaso; corro muito, pois estudo, faço estágio, fisioterapia e viajo nos fins de semana com a namorada. Tinham viajado de férias para uma praia no nordeste …
Assim, deu-se o percurso de Steves – do cemitério para a vida.
… para alcançar a felicidade é necessária uma boa dose de ousadia e coragem, e não se medir pela expectativa do que esperam de você. Em uma análise, felicidade é suportar o inesperado. (Forbes, 2009: Felicidade não é bem que se mereça)
Teresa Genesini é psicanalista, mestre em estatística pela UNICAMP e pesquisadora do Projeto Análise