Do amor 10/03/2016

Por Dorothee Rüdiger

“A garota dinamarquesa” é mais que uma história sobre a transsexualidade. É uma história de um amuro,  do amor de uma mulher que começa, quando a distância entre ela e o marido aparece provocada pelo desejo dele de tornar-se uma mulher

Quero falar do amor. Não do amor romântico, recíproco e sentimental, mas do amor que Jacques Lacan chama de amuro. Em tempos difíceis é bom falar do amor. Nem tanto para escapar do espírito do tempo, nem tanto para deixar-se embriagar pela paixão para não sentir as dores do momento, mas para talvez encontrar no duro amor do amuro  sustento para viver apesar da impossibilidade de encontrar a palavra certa no encontro com o outro e, porque não num sentido mais político, com os outros.   

Motivos parar essas reflexões  sobre o amor para lá do muro da impossibilidade do entendimento encontrei recentemente, quando me deixei tocar pelo filme “A garota dinamarquesa”   e pelas palavra ditas por Jacques Lacan  lidas em voz alta durante o último encontro  do Projeto Análise de Jorge Forbes. Visto pelo prisma do seminário 20 de Jacques Lacan, o filme trata,  além da questão da identidade sexual, desse novo amor chamado amuro.  

A história do amor singular e revolucionário entre Einar Wegener e sua mulher Greta passa-se durante os anos 20 do século passado.  Einar e Greta formam um belo casal recém-casado e apaixonado.  Vivem como podem em Kopenhagen. Ele, além de fazer sucesso como pintor, trabalha como cenógrafo. Ela tenta vender os quadros dela sem grande êxito. Falta vida nos retratos que pinta de pessoas conhecidas da sociedade.   

O acaso vai fazer com que a vida desse casal vá tomar um rumo imprevisto.  Uma das modelos de Greta, uma bailarina, fica doente. Na falta do modelo,  a mulher pede para o marido se deixar pintar segurando o vestido dessa bailarina. Einar descobre  no momento da pose de bailarina um estranho desejo de vestir roupas femininas. “Por que não?” Greta acha graça do marido e os dois passam a brincar  de cross dressing  vestindo Einar de “Lili”.  Pouco a pouco, vai se manifestar o desejo de Einar de não só se vestir como mulher como também  ter um corpo de uma mulher. A  cena em que descobre seu estranho desejo, uma  cena quase “schreberiana”,  é  muito bem alocada nos bastidores de um teatro, onde  há possibilidade de se representar diversos papéis  no palco que representa a vida.  Einar poderia continuar simplesmente a representar uma mulher.  Mas, o que corresponde para Einar ao desejo de ser uma mulher  é ter um corpo de uma mulher, livrar-se dos órgãos sexuais do homem percebidos ali, diante do espelho, como sendo apêndices que o incomodam.  O homem resolve fazer coincidir a identidade de mulher  com o corpo de uma mulher.  

No entanto, “a garota dinamarquesa” não é ele.  E o filme é mais que uma história sobre a transsexualidade. É uma história de um amuro,  do amor de uma mulher que começa, quando a distância entre ela e o marido aparece provocada pelo desejo dele de tornar-se uma mulher.  Marido e mulher passam a viver  um amor que ultrapassa os padrões da moral vigente,  um amor sustentado para lá  do prazer das relações sexuais.  Como amar um marido “capado” que não dá mais “conta do recado”?  O amuro vive da diferença, da falha, do abismo entre um e outro, da castração, aqui tomada no sentido literal da palavra. Esse abismo aparece na história (filmada pelo diretor Tom Hooper, e premiado com o “Oscar” pela atuação da atriz Alícia Vikander), quando o marido segue seu desejo e decide transformar seu corpo.     Greta o ama para lá das convenções, do “o que os outros vão pensar” e de seus próprios desejos sexuais.  Einar, por sua vez,  não deixa de amá-la . Sem referência alguma nos códigos de conduta, os dois inventam um amor. São dois artistas. Conseguem expressar sensibilidade e singularidade na arte. Superam, muito à frente de seu tempo, suas angústias diante  dos caminhos estranhos que o desejo possa trilhar.    

Dorothee Rüdiger é psicanalista e doutora em Direito pela Universidade de São Paulo

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