Dez Aforismos Pela Vida 01/09/2016

Por Jorge Forbes

NOTA: Esse texto foi comentado nesta semana, na terça-feira 30/8/16, no curso semanal de Jorge Forbes, por solicitação dos participantes, dando continuidade ao estudo do tema que trabalha atualmente – as consequências do pós-humanismo na subjetividade humana e a posição da psicanálise.  Originalmente, ele foi apresentado no debate: “Células-tronco embrionárias: usar ou não para pesquisa?” promovido pelo Professor e Presidente Fernando Henrique Cardoso, pela então vereadora Mara Gabrilli, e pela OAB-SP, no Salão Nobre da Câmara Municipal de São Paulo, na noite da quarta-feira, 20 de junho de 2007, momento em que o STF julgava a possibilidade ou não de experimentos científicos com células-tronco embrionárias, no Brasil.

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DEZ AFORISMAS PELA VIDA

Quando começa a vida? Essa é a questão fundamental que nos reúne nesta noite: “Quando começa a vida?”, para que a vida já começada de milhões de pessoas possa melhorar ou continuar? Os organizadores, a quem agradeço o convite, pediram-me para falar até dez minutos. A prudência aconselhou-me a redigir um texto para que o entusiasmo das ideias e o calor da expressão, não gerem descortesia para com os companheiros de mesa e o público.  Optei, então, por escrever e ler dez aforismos pela vida.

  1. Quando começa a vida humana? É necessário precisar a questão. Vida e vida humana não se equivalem, não são sinônimos. Nisso estamos todos de acordo. Um chuchu pode estar vivo, uma vaca pode estar viva, uma parte do corpo humano, como a córnea, pode estar viva, todos contribuem à manutenção da vida humana, mas não respondem à pergunta que nos reúne.
  2. Quando começa a vida humana? Será que é a ciência que vai nos responder precisamente? Ora, o paradoxo epistemológico determina que na ciência o que se realiza, pode ou não ser científico, segundo critérios bem definidos e compartidos nas academias – mas a razão, a importância daquilo que se produz – razão no sentido de motivo – isso não é passível de ser provado cientificamente; o que não diminui em nada a importância dos cientistas nesse debate, mas os reposiciona. Aqueles que diariamente contribuem para os avanços da ciência desenvolvem especial sensibilidade a seu emprego ético; pronunciei a palavra um tanto desgastada: ética. Estamos em uma encruzilhada ética. Teremos que diferenciar ética de moral. Ética como as condutas que se adotam frente à variedade humana; moral como a padronização de uma dessas variações defendida por grupos de influência, por razões não científicas. Assim, dizer boa ou má ética já é, em si, uma atitude moral.
  3. Quando começa a vida humana? Não será como a de todos os animais, na concepção, no encontro de um óvulo com o espermatozóide? O poeta Keats compõe em um jardim de Hampstead, em abril de 1819, sua “Ode a um rouxinol”. O rouxinol que Keats ouvia naquele jardim era o eterno rouxinol, o mesmo que foi ouvido por Ovídio ou por Shakespeare, mas, para sua tristeza, ele, Keats, não era o mesmo que Ovídio e Shakespeare; constatação que só piorou o seu desconsolo. Assim somos nós, os humanos: indivíduos da mesma espécie, mas não a mesma espécie de indivíduos.
  4. Quando começa a vida humana? E nela, o que nos diferencia dos animais? O fato de sermos seres da linguagem e não do instinto. Uma mula é sempre uma mula; um macaco, sempre um macaco; um cachorro, sempre um cachorro. O homem pode se comportar como uma mula, fazer uma macaquice ou uma cachorrada. O homem não é sempre um homem, é o único animal que duvida, a começar de si próprio, como diria Ruy.
  5. Quando começa a vida humana? As variadas respostas indicam suas dependências aos pontos de vista adotados. Não há um consenso. As respostas mais comuns são que a vida humana começa: a) No momento da fecundação, quando um espermatozóide penetra um óvulo e seus núcleos se combinam; b) Quando o sistema nervoso atinge uma formação suficiente para o seu funcionamento autônomo, entre o terceiro e o quinto mês de gestação; c) No momento do nascimento, ao se cortar o cordão umbilical; e ainda d) Quando o ser tem condições de fazer os primeiros registros de memória, reagindo ao aparecimento e desaparecimento de uma pessoa próxima – o chamado “sinal do espelho”.
  6. Quando começa a vida humana? Ë fácil constatar que começa em uma data dependente de uma convenção, não de uma prova científica. Salvo a primeira idéia – a do momento da concepção –, bravamente defendida por grupos religiosos militantes, os outros segmentos sociais não têm dificuldade em concordar que o mais cedo que a vida humana começa é com a autonomia do sistema nervoso central. E isso porque já é de boa aceitação que a morte é, em nossa sociedade, definida pelo oposto, a saber, pela parada de funcionamento do sistema nervoso. Aí, nesse momento, coração bate, pulmão respira, estômago digere e, no entanto, há vida, mas não vida humana – razão que possibilita a fundamental doação de órgãos. Por que não nos é claro o oposto? Se um corpo inteiro funcionando está morto com a parada do cérebro, como um conjunto de quatro a oito células indiferenciadas, fora do organismo, congeladas, in vitro, pode ser chamado de vida humana – e seu uso terapêutico, de assassinato de indefesos?
  7. Quando começa a vida humana? Estive no Supremo Tribunal Federal, na audiência pública em que seus ministros ouviram cientistas de posições opostas como parte do julgamento da ADIN-Ação Direta de Inconstitucionalidade contra o uso de células-tronco embrionárias em pesquisa e terapia. Três notas que dispensam comentários: 1) De uma assim chamada cientista – “No zigoto de Mozart, já estavam escritas suas sonatas; no de Drummond, seus poemas”. 2) Do ex-procurador geral da República, autor da ADIN – “A doutora Mayana Zatz, que é o principal elemento de quem pensa diferentemente da gente, tem também uma ótica religiosa, na medida em que ela é judia e não nega o fato”. 3) O site de publicações científicas Medline indica, entre os cientistas ouvidos pelo Supremo Tribunal Federal, que aqueles a favor das pesquisas com células-tronco embrionárias, já publicaram 257 trabalhos nesse campo, enquanto os que são contra publicaram 7.
  8. Quando começa a vida humana? Dizia ser uma questão ética. A grossíssimo modo, dividiríamos em grandes períodos: uma ética do temor de Deus, reinante até o Iluminismo; uma ética da razão, dele até o final do século passado; e uma ética da responsabilidade e do desejo (Hans Jonas e Jacques Lacan, entre outros) desde então. Nessa ética atual, não cabe o argumento de que o melhor é não começar essas pesquisas, pois sabemos qual será a próxima, aonde elas vão nos levar, como dizem os velhos sábios e seus jovens e garbosos acólitos, em tom profético-ameaçador. Na ética de nossos dias, é de nossa responsabilidade não só o conhecido, mas também o descoberto, a invenção. Não há um outro que zele por nós de quem devemos aguardar o sopro esclarecedor. Não temos porque enxergar nos cientistas criminosos disfarçados, a não ser, em nossas fantasias.
  9. Quando começa a vida humana? Vim para esta mesa sabendo que temos posições diferentes e pouco flexíveis. O que pretendi foi só dizer da minha opção: não desisto de reconhecer no ser humano o estatuto da dúvida, que lhe é inerente, e não almejo para ele a semelhança de uma vaca instintiva, que define sua trajetória no primeiro encontro de um espermatozóide com um óvulo.
  10. Quando começa a vida humana? Em muitos momentos. Quando, por exemplo, as pesquisas com células-tronco embrionárias possibilitarem devolver os movimentos dos braços e das pernas à vereadora Mara Gabrilli, organizadora desse encontro, para que possamos sentir o seu abraço.

Jorge Forbes

São Paulo, 20 de junho de 2007

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