Desata o nó e o nó diz ata-me 01/12/2016

Por Gisele Vitória

NOTA: Esse texto foi comentado na terça-feira 21/11/16, no curso semanal de Jorge Forbes, como memória da aula anterior, dando continuidade ao estudo do tema que trabalha atualmente – as consequências do pós-humanismo na subjetividade humana e a posição da psicanálise.

A cirurgia corta com anestesia. Uma vez, numa aula do curso fundamental “De Freud a Lacan”, em noite de segunda-feira no IPLA, temo ter perguntado ao psicanalista Jorge Forbes qual seria a diferença entre ouvir um desaforo na rua e ouvir um desaforo no divã. O contexto era o das histórias folclóricas de Jacques Lacan e seus duros cortes nos seus analisandos, ainda que repletos de polidez, em seu consultório na rua de Lille, número 5, em Paris. 

Se não me engano, Forbes respondeu que seria mais ou menos a diferença entre levar uma punhalada num ataque e ser cortado com um bisturi num centro cirúrgico. O corte do punhal fere para atacar. O corte do bisturi fere para curar. As reações são distintas. Na punhalada da rua, sangra a dor da humilhação, da raiva ou do medo. No corte do consultório, a dor abrandada com anestesia pode ser gatilho para a mudança. Seria isso? 

Entendi melhor aquela estranha comparação no fim da última aula do Seminário Terra 2, no começo de novembro.  A luz se deu após a proposta de leitura de um texto Jacques-Alain Miller, que será tema da próxima discussão.  No seminário “O momento de Concluir”, Lacan disse: “Devemos elevar a psicanálise à dignidade da cirurgia.” O corte é o modelo do ato analítico no seu último ensino e na sua última prática. Diz Lacan: “Atuar por intermédio do pensamento roça a debilidade mental.” Seria como elevar o objeto à dignidade da coisa. “A cirurgia é a sublime ação da psicanálise”, observa Forbes. “É o fantasma de Lacan que se expressa nessa aspiração.”  Lacan glorifica e eleva o trabalho psicanalítico à segurança soberana do gesto cirúrgico: cortar. 

Porque isso é tão importante? “Porque você vai direto para o Real. Você não fica dando explicações. Corta diretamente e radicaliza a sessão analítica”, explica Forbes. “Corta completamente o símbolo. Não se preocupa tanto com a compreensão e, no entanto, o paciente melhora.” 

Corta. O nó des-ata ou não desata? O nó diz: ata-me. É apenas ata. Forbexplica na próxima aula. Voltemos, pois, um passo atrás: as conclusões dos estudos sobre a Parábola dos Talentos, do Evangelho de Mateus, citada também em passagens de outros apóstolos. Nas conclusões de seu texto sobre o tema, a professora Dagmar S. Pinto de Castro lembra que quem se desculpa se acusa. Segundo a análise de Dagmar, o enigma da Parábola aponta que o servo punido por ter enterrado o talento como coisa morta não assumiu os riscos de tentar frutificá-lo. Arriscar é o peso de viver. Os dois primeiros servos que multiplicaram seus talentos tomaram posse do acaso, escaparam da lei e inventaram novas respostas. Dagmar propõe a reflexão: “Será este o regulador que carecemos no século  21? Sairmos da lei, entendida como pai orientador, e sem a regulação. Aos servos, não mais receitas. A ordem é correr riscos. Frente ao acaso, invente o futuro.” 

Forbes acrescenta que, na Parábola dos Talentos, há duas formas de entender a relação com o senhor como pai. Uma é uma forma onde a herança é trabalhada e assumida. A pessoa toma para si o risco de perder a herança do pai, como os dois primeiros servos poderiam ter perdido. A outra forma é de sacralizar o pai, enterrando o talento e devolvendo-o tal com era. Forbes relembra Luc Ferry e reforça sua leitura diferente da parábola – até porque, sendo enigma, ela pode ser lida de várias maneiras. Em seu livro “A Revolução do Amor” – Ferry trabalha a Parábola para dizer que ela é uma saída da aristocracia para a meritocracia. Lembra ainda que, para o aristocrata, o trabalho não faz sentido. O Príncipe recebeu sua herança da natureza. 

No livro “Do Amor”, de Ferry, o filósofo volta ao Evangelho de Mateus, no Sermão da Montanha. O filósofo escreve que, quando Jesus diz que veio “não para abolir, mas para cumprir a lei, faz uma alusão à lógica do amor. Ele lembra que Hegel dedicou páginas magistrais do sermão da montanha dirigida aos judeus ortodoxos e aos fariseus.  Repete: “Eu não vim para abolir a lei mas para completá-la. Diz Ferry: “Hegel contrapõe o judaísmo ao kantismo: enquanto na moral judaico-kantiana, a lei é imposta de cima para baixo às inclinações naturais (…) , no cristianianismo é o amor, que, de alguma maneira, de baixo para cima, vai realizar o cumprimento ou, ousaria dizer, a plenitude da lei: não há necessidade de um “você deve”. 

O nosso próximo dever, um estudo do “Momento de Concluir”, de Lacan, na interpretação de Jacques-Alain Miller, vem para assentar a metáfora cirúrgica em Freud e Lacan. Lacan chama a criança aonde se aloja a nossa inibição. Nós ficamos inibidos na hora de imaginar como se comportam as coisas nesta ordem – simbólico, imaginário e real. “Lacan dá o exemplo do enredo necessário para superar essa inibição. As palavras não têm o poder que um dia nós acreditamos quando deliberávamos a palavra na linguística”, diz Forbes. “Isso não impede, no entanto, que elas tenham consequências, e aqui se trata de levar em conta as consequências das palavras. Lacan orienta que o analista se dê conta do alcance das palavras para o seu analisando.” O bisturi corta. Sem dor, por favor. Des-ata o nó com mais amor. 

Gisele Vitória é jornalista, colunista da revista IstoÉ e diretora de núcleo das revistas Planeta, IstoÉ Platinum, da Editora Três 

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