De volta para o Futuro 29/09/2016

Por Gisele Vitória

Os impasses para um projeto pós-humanista, o teorema da incompletude e o soco na exatidão matemática, o transumanismo e a uberização:  este texto é baseado em uma aula do psicanalista Jorge Forbes, ministrada no dia 13 de setembro de 2016, durante o seminário Terra 2. 

Estamos no presente. Em 13 de setembro de 2016,  a  ideia “homem do futuro” trafega entre o transumanismo e o pós-humanismo. Estamos no presente, mas já praticamos o ideal do futuro: um rim artificial. Um coração biônico. Sim, o pós-humanismo entende que o corpo humano é descartável.

O tempo é verbal. No transumanismo, o futuro já é do presente.  Ou quase é. Voltemos ao passado para compreender melhor: como disse o filósofo estoico Sêneca, o futuro não é ainda. Assim como o passado não é mais. O presente é o que temos. Devemos ter esperanças? Jorge Forbes lembra que, para Nietzche, tanto a esperança como a nostalgia são paixões tristes porque negam a atualidade. Esperança é um sentimento do futuro. Nostalgia, sentimento do passado. Entre os lacanianos, tanto a esperança quanto a nostalgia tendem a ser moralistas.

Gödel e o teorema da incompletude, um soco na exatidão:

Nem tudo é completo. Para nos salvar da exatidão ou provar que nem tudo é verdade demonstrável, o lógico Kurt Gödel desferiu, em 1931, um golpe devastador contra os matemáticos de sua época e os do passado. Com o seu teorema da incompletude, provou por A mais B a existência das sentenças indecidíveis. Foi um soco no estômago dos matemáticos Bertrand Russell e Alfred Whitehead, autores de “Principia Matemática”. Em 1909, eles haviam curado 2 mil anos de gastrites naqueles que passaram a vida remoendo-se para achar fórmulas que demonstrassem uma verdade verdadeira.

Certezas e verdades

Até Gödel, eles estavam felizes de chegar à definição de uma verdade. A verdade dedutiva. A verdade do teorema. O axioma. Isso acalmou a vida dos que precisavam ter um instrumento de certeza. Fizeram da matemática a ciência das certezas. Mas ela é a ciência das verdades. As pessoas juntam verdade com certeza.

Freud não junta. As pessoas sofrem das suas verdades ficcionais e não das suas certezas. A verdade de cada um é diversa. Isso está na carta 69, em que Freud responde a Fliess. É quando ele desiste da verdade referencial. A verdade referencial diz respeito a algo fora da língua. Verdade ficcional é uma verdade que diz respeito dentro da língua. Os psicanalistas trabalham com verdades axiomáticas. Cada um dos humanos tem um axioma. E cada um de nós vê o mundo por uma janela. “Eu gosto disso” é igual a “isso faz sentido para mim”.

Na prática, o teorema de Gödel demonstra isso.

Um ponto chave para a psicanálise

Está aí uma diferença entre os médicos e os psicanalistas. Os psicanalistas trabalham no território das sentenças indecidíveis. Um médico talvez diga: isso não existe. O que existe é um estágio atual da ciência em que não se resolveu ainda determinado impasse. Se não há resposta, o médico aprofunda a pesquisa para gerar um novo axioma. A ressonância magnética é um passo além do raio x. É um novo axioma.

A psicanálise trabalha e recupera aquilo que a ciência não consegue dar conta. Os psicanalistas trabalham com as sentenças indecidíveis. Você tenta aprofundar uma verdade? Existe esse caminho. Mas, na psicanálise, o trabalho consiste muito mais em tratar de fazer com que uma pessoa decida sobre suas sentenças indecidíveis. Os elementos com os quais a psicanálise trabalha são, sobretudo, aqueles que, por mais que se aprofunde, voltam ao mesmo lugar.

Um impasse para o projeto pós-humanista

Jorge Forbes pontua a diferença dos discursos: o discurso da ciência tem o poder de fazer saber. Discurso da tecnologia tem o poder de saber fazer. O discurso da propaganda tem o poder de fazer querer. O discurso do Direito tem o poder de fazer dever. O discurso burocrático e autoritário tem o poder de fazer fazer. É o único discurso com o qual você não conversa. O discurso da ciência visa a onisciência. O discurso da tecnologia visa a onipotência. As sentenças indecidíveis põem em questão o projeto da onisciência e da onipotência, e, por consequência, o projeto pós-humanista. Impasse: só se realiza um projeto pós-humanista quando se souber o que o homem é.

Voltamos a hybris ou ao conceito que significa ir além dos limites. Seu sintoma não tem mais expressão da dúvida. Seu corpo responde. O pulso ainda pulsa: úlcera, frigidez, dor de cabeça, quase como a canção dos Titãs, peste bubônica, raiva, anemia. Ou, então, você vai para a análise. Você busca encontrar uma maneira não axiomática da regulação da hybris, do excesso, ou da sentença indecidível, ou do real. Os termos não são sinônimos. Mas são equivalentes, dependendo do prato que escolhe no cardápio da vida.

A psicanálise chegou a se pensar como um processo dedutível. A interpretação dos sonhos é isso. Mas o fato é que a essência ética do tratamento do gozo ultrapassa a prova científica. A primeira clínica de Jacques Lacan responde a um ideal científico. Ele introduz a ciência da linguística, retoma de Freud, avança sobre o funcionamento do sonho e ensina os analistas, não a “sentir” o ponto de transferência e dizer o que o paciente tem, mas a escutar o que o paciente diz.

A neurose e o Feitiço do Tempo

A neurose é uma forma mentirosa de resolver a incompletude da vida.
Todas as vezes que você tiver sentenças indecidíveis, vai gerar novas neuroses. A neurose é uma forma mentirosa de lidar com aquilo que escapa. E qual é a fórmula não mentirosa? É a fórmula criativa. Na anteposição da neurose, que é a repetição  do mesmo, você tem a criatividade. Pergunto: O “Feitiço do Tempo”, o eterno dia da marmota de Bill Murray, seria um filme sobre a neurose? A hora em que ele resolve se reinventar, brincar, até se matar e ressuscitar na prisão de seus dias repetitivos, o relógio finalmente deixa de marcar 6h00 da manhã e a vida muda. Qual é a diferença entre os dois modos de vida? Um é com garantia. O outro é sem. Você quer mundo com garantia ou mundo sem garantia? Mundo com garantia: dá-lhe neurose. Sob esse ponto de vista, a neurose dá certo. Não dá certo no mundo sem garantia: a pessoa não tem o apoio do axioma. O reconhecimento vem a posteriori.

 Transumanismo e uberização

O uso da engenharia genética para produzir bebês sob encomenda é a expressão máxima da hybris, que marcaria a perda da referência da vida. Luc Ferry vê uma regulação como saída. O livro de Ferry fala do transumanismo e da uberização do mundo. O que há em comum entre eles? Um desregula a biologia e outro a economia? A regulação do transumanismo vale para o uber?

Para esquentar: a uberização do mundo faz sentido? Essa revolução transumanista é tão mais poderosa que vem junto com uma economia dita colaborativa. Essa revolução se embala muito mais depressa. Ela é sustentada em paralelo com uma nova infraestrutura mundial. A uberização do mundo anuncia talvez o fim do capitalismo e o surgimento do mundo da gratuidade, da solidariedade, da fraternidade e da preocupação com o outro? Ou vivemos um hiperliberalismo venal e desregulador para o qual o mundo hiperconectado está nos levando insidiosamente?

Há via? No texto de Jorge Forbes, intitulado “Há Via”, o psicanalista diz: a neurose e seu reiterado retorno à duvida faz compromisso de postergação. Caetano Veloso, em contra-senso, canta: não temos tempo de temer a morte. Para ambos, o neurótico e o compositor, a morte é questão de tempo. Para o neurótico, a postergação metonímica se baseia numa providência, sendo esperada, mas nunca alcançada, a não ser no sintoma. Já para Caetano, o futuro é como em Freud: uma ilusão.  

Gisele Vitória é jornalista, colunista da revista IstoÉ e diretora de núcleo das revistas Planeta, IstoÉ Platinum, da Editora Três 

Publicado em O Mundo visto pela Psicanálise, ed. 168 – 30 de setembro de 2016

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