De onde vem o desejo?

De onde vem o desejo? 19/09/2019

Moara Rodrigues

O episódio Striking Vipers, 1º da quinta temporada da série Black Mirror, surpreende ao trazer os temas de tecnologia, desejo, amizade e matrimônio num emaranhado de descobertas de emoções imaginárias porém sentidas de forma real. No episódio, as personagens Karl e Danny, amigos de longa data, se encontram virtualmente na versão X do jogo Striking Vipers que traz um dispositivo eletrônico, que possibilita a experiência em realidade virtual. Ainda que seja um jogo de luta, muito presente na vivência masculina, o encontro virtual é marcado pela experiência do desejo sexual que escapa às personagens retratadas até então de forma heterossexual.

Talvez seja interessante lembrar que algumas modalidades de luta, por sua cadência e a conexão física que promovem, acabaram se tornando uma dança, como a capoeira ou o tango –  que inicialmente nasceram de pares de homens que “dançavam” lutando e só entendiam o contato físico com outro homem possível dessa maneira.

A luta-dança, assim como o jogo virtual, podem talvez ter algo em comum: ser o canal pelo qual dois homens heterossexuais se permitam um contato mais íntimo, sem que se sintam “estranhos”, dentro das normas sociais padrão.

Ainda que se levantem outras questões, tais como, se traição virtual é de fato traição real, o episódio retrata algo de ordem muito maior, que vai além de normas e padrões sociais, que é a origem do desejo humano. Como explicar a experiência sexual vivida por ambas as personagens e retratada como algo “transcendental” na via do imaginário mundo virtual? Em que ponto a realidade que nos cerca, seja ela real ou virtual, toma conta dos nossos afetos interiores? E por onde andavam esses afetos até romperem com a ordem normativa?

Assim como no tango, na capoeira ou em qualquer outra modalidade de dança em duplas, fica claro que é no descompasso – e não na coreografia – que se encontra o sublime do ato de dançar. É na surpresa de um passo inesperado, de um desencontro, que nasce a possibilidade da reinvenção. E é também a tensão da repetição dos passos que torna possível chegar ao descompasso.

Usando essa metáfora, podemos traçar um paralelo com o episódio, em que a dança da vida transcorre sem surpresas, com a máquina de lavar louças controlando a rotina, até que algo é rompido quando Danny (re)descobre algo inesperado no jogo com o amigo. É aí que o descompasso entre a vida real e a virtual, causa, em um primeiro momento, sentimentos conflituosos de desejo e culpa, mas (e talvez justamente por isso) ao mesmo tempo se torna irresistível para as personagens.

Em meados de 1900 Freud está começando a tatear o mundo interior e diz que “os sonhos são a via régia para o inconsciente”. Mais de um século depois nos perguntamos se a realidade virtual será a via régia para o nosso mundo inconsciente, local de realização de desejos inconcebíveis, realidades inexplicáveis e materialização do impossível, dos descompassos entre real e imaginário.

Striking Vipers impõe os desejos humanos via realidade simbólica e imaginária. Não é a realidade que nos move, mas sim o simbolismo da linguagem avatar e a fantasia que opera o funcionamento da máquina humana das personagens. Máquinas essas que não querem ser como a repetitiva e irritante máquina de lavar louças do casal, epíteto da monotonia e contraste dramático com a aventura que a outra vivência tecnológica proporciona. Vale lembrar que o casal Danny e Theo, no começo da trama se encontra em um bar e naquele momento, quando tudo era perfeito e coeso, a conversa que os move é uma conversa fantasiosa, criativa, que os coloca como desconhecidos frente a um mundo de possibilidades. No entanto, na dança do cotidiano, o desejo e o amor, em sua coreografia, por vezes perdem a sincronia e precisam confiar no descompasso para que a dança não acabe – é desses paradoxos da vida.

Talvez seja justamente essa a tarefa árdua do amor, mover e remover com as nossas fantasias. Em “A máquina de fazer espanhóis” Valter Hugo Mãe diz que “o amor é para os heróis”, mas não necessariamente para heróis de jogos virtuais onde a pele é suave, e sim no reinventar-se de cada dia, na luminosidade de ser mais ainda que humano, sem que nos esqueçamos que é justamente da incompletude, do descompasso e do erro que nasce o “mais”.

Moara Rodrigues é membro do Corpo de Formação em Psicanálise do IPLA