Por Ana Carolina Barros Silva
Com lei ou sem lei, temos dificuldades para dar voz às nossas crianças, para não tomá-las como objetos de nossas fantasias
Nos últimos dias, acompanhamos a grande repercussão da aprovação, pelo senado brasileiro, da “Lei da palmada”. A lei tem por objetivo prever punições para agressores e, também, para os profissionais do campo da educação e da saúde que negligenciarem qualquer situação de violência contra crianças e adolescentes. Por agressões, entendem-se atos que provoquem lesões corporais e sofrimento às vítimas.
Vimos surgir pelo menos dois grandes grupos: os contrários e os a favor da lei. Enquanto os primeiros a qualificam de “fascista”, pensando que ela intentaria disciplinar a família e o modo de educar as crianças, os segundos dizem que é uma forma de proteger as crianças e adolescentes de abusos e violências cometidos por cuidadores dentro de suas próprias casas.
Nesse texto, por cuidado, a priori, não gostaríamos de tomar partido de nenhum dos dois grupos, mas sim, de refletir a respeito de seu objeto: as crianças. A criança, hoje, precisa ser comportada, superdotada, ocupada, medicada, diagnosticada, rotulada, encaixada, protegida, espancada, tutelada. Em nossa sociedade, “ser criança” é, comumente, sinônimo de “ser passivo”. Com lei ou sem lei, temos dificuldades para dar voz às nossas crianças, para não tomá-las como objetos de nossas fantasias. Quem cuida de uma criança pode auxiliá-la no processo de tomar posse de seu corpo, de suas próprias palavras, de uma instância de um dizer que seja singular.
As crianças no mundo contemporâneo merecem muitas palmas! Merecem congratulações pela forma como, muitas vezes, vão mostrando para os adultos que podem estar no mundo de uma maneira própria. A criança que fala por si pode incomodar boa parte da nossa sociedade “autoritária”. Os exemplos: Sentindo-se invadido, um menino me diz: “- Quero escrever uma carta para meu neurologista para dizer que ele quer saber demais da minha vida!”; dando-se conta das injustiças, outro fala, indignado: “- Por que eu tenho que saber todas as respostas se a professora tem um livro que já vem respondido? ”. Curiosa ao perceber que a música não toca, a menina faz sua hipótese: “- Mas é claro que não vai tocar, o CD está estragado, com um furo bem no meio! ”. Crianças, como essas, equivocam, obrigam-nos a refletir, a questionar minimamente: com quem estamos lidando? Certamente formam opiniões, não são formadas por elas.
Uma criança que responde desde um lugar padronizado ou, mesmo, essa criança sobre a qual autoridades discutem ser certo bater ou não bater, pode parecer uma criança mais “flexível” ou “passível de um manejo mais simples”. São aparências que se desfazem no ar quando nos questionamos acerca do que pretendemos para nossos filhos: pessoas que formam opiniões ou são formadas por elas?
Enquanto analista de crianças, não me preocupa tanto se a razão está com quem se opõe ou com quem admite a lei da palmada. Interessa-me, muito mais, os modos para sair dessa lógica “tutelar”. Mais grave do que a lei ou uma palmada dada em um momento de descontrole, é agir “assujeitando” estas crianças, emudecendo-as. Partilho, para concluir, uma lição que uma delas me ensinou: “- Se quer saber algo sobre mim, me pergunte! ”.
Ana Carolina Barros Silva é psicóloga, cursa especialização em psicanálise com crianças e mestrado na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.