Por Nathália Lima
A doença, meio pelo qual obteve o lugar tão almejado, era aquela que o tiraria da vida com a mesma rapidez
“Se procederes bem, não é certo que serás aceito?
Se todavia, procederes mal, eis que o pecado jaz à porta;
o seu desejo será contra ti,
mas a ti cumpre dominá-lo” (Gênesis 4 : 1-17).
Foi metaforizando o Livro do Gêneses, a partir da passagem de Caim e Abel, que Túlio começou a me dizer da sua história. Acabara de ser internado no hospital, já em seus últimos dias de vida.
Túlio sobreviveu à sombra de seu irmão mais novo, se sentindo subestimado em relação ao amor dos pais e acreditando que o irmão possuía mais qualidades e privilégios. Com o passar dos anos, essa rivalidade o deixava mais amargurado, paralisando-o, enquanto o irmão prosperava. Descrevia lembranças reprimidas, de grande intensidade emocional e fruto de suas fantasias, a partir de seus desejos mais proibidos em relação aos pais e ao irmão. “Eu queria ser grande”, ele me dizia. Mas o mundo lhe foi hostil e as circunstâncias culpadas pela sua infelicidade. Procurou por meios mágicos atingir seus planos. Afastou-se do irmão e se casou com uma mulher que realizava rituais de feitiçaria. Para ele, ela possuía um saber sobre as coisas que o levaria a qualquer lugar que desejasse. Já idoso, sem obter sucesso, abandonou a esposa e viveu recluso até a internação.
Amódio. Freud no seu escrito, A pulsão e seus destinos, fala que o contrário do amor não é o ódio, e sim a indiferença. Diz que uma forma de amar se dá por meio da ambivalência afetiva, na antítese do “amar-odiar”, o “amódio”. Túlio parece ter se relacionado com seu irmão e com a vida pautando-se nessa ambivalência. No hospital, vivenciava seus conflitos de forma dolorosa. Diante do seu estado de saúde, a cunhada e as filhas do irmão assumiram seus cuidados. Assim, finalmente, estava conseguindo algo que tanto desejou, estar recebendo o amor que o irmão recebia, porém, a situação o deixava enraivecido. A doença, meio pelo qual obteve o lugar tão almejado, era aquela que o tiraria da vida com a mesma rapidez. Por isso Túlio, desesperadamente, tentava fugir da morte e da culpa, procurando alguém que o livrasse daquele buraco, o médico, o sacerdote, a psicóloga.
Ele se referia a mim como um anjo enviado por Deus para lhe perdoar pelos erros cometidos. A oferta de ser acolhido e escutado diante da angústia que apresentava e de poder falar pela primeira vez desses desafetos, foi o exercício ao qual me propus. Orientada pela ética da psicanálise, sou convidada a olhar para além do que o paciente demanda. Trabalhando como psicóloga na equipe de cuidados paliativos, entendo que nessa circunstância se trata de emprestar escuta e presença à pessoa que está em sofrimento, angustiada e na perspectiva de morrer, momento que também convida, a mim, entrar em contato com o limite maior da vida, a morte.
É possível mudar setenta e poucos anos em duas semanas? No meio desse turbilhão de sentimentos, como incidir analiticamente? “Secretariar” a dor e possibilitar alguma elaboração diante de tamanha angústia? Que visada eu poderia dar que abrisse a perspectiva da responsabilidade pelas escolhas ao invés da culpa que o devorava?
Não me caberia desculpabilizá-lo por meio de sua fala, mas esta poderia ajudá-lo para que, diante da experiência de se ouvir, pudesse se implicar na história que ele mesmo havia construído, saindo da posição de vítima e consequentemente sentindo-se mais apaziguado. É pelo recurso do amor, da poesia, do que nos escapa, do desejo, do que toca o impossível, que nós podemos inventar uma saída. Afinal, mesmo diante do momento de encontro com a finitude, a vida lhe dera mais uma chance, a de consentir ser amado pelo outro.
Nathália Lima, psicóloga do Hospital das Clínicas de São Paulo.