Da liberdade para ser Maria ou João 29/10/2015

Por Renata de Oliveira Costa

Nesta semana, a questão a respeito de identidade de gênero proposta no ENEM suscitou diversas discussões a respeito do tema

Nos últimos anos, a cada aplicação do ENEM – Exame Nacional do Ensino Médio, espera-se uma enxurrada de notícias relacionadas a erros na elaboração de questões, fraudes ou candidatos perdendo a oportunidade de ingressar no ensino superior por terem chegado atrasados no local da prova. Este ano não foi diferente, terminada a aplicação do exame, que ocorreu nos dias 24 e 25 de outubro, o ENEM era um dos assuntos mais comentados nas redes sociais. No entanto, não foi o vazamento de questões ou o sofrimento dos candidatos atrasados que ganhou destaque na mídia. Este ano, um dos assuntos que mais gerou discussão foi a primeira questão da prova de Ciências Humanas e suas Tecnologias. Vamos a ela:

Nessa questão, era esperado que os candidatos relacionassem o pensamento de Simone de Beauvoir presente no excerto reproduzido na prova com um movimento social estruturado nos anos 60. A resposta correta seria a alternativa “c”, que indica a relação do que é afirmado no excerto com “organização de protestos públicos para garantir a igualdade de gênero”.

Muitos internautas comemoraram a inserção do tema por meio das redes sociais, indicando a necessidade de discutir a igualdade de gênero. Houve também um número considerável de internautas que se mostraram contrários à discussão proposta por meio da questão.  

Entre os famosos que manifestaram seu descontentamento estão os deputados Jair Bolsonaro (PP-RJ) e Marcos Feliciano (PSC-SP) que comentaram a questão em seus perfis em redes sociais.

O primeiro afirmou que o governo estaria impondo o que chamou de “doutrinação” aos jovens do nosso país. Afirmou ainda, no que nos pareceu uma tentativa de parafrasear o excerto da obra de De Beauvoir: “João não nasce homem e Maria não nasce mulher”. Dizendo na sequência que o exame seria uma tentativa de tornar a população “idiota”.

Já o deputado Marco Feliciano discorreu longamente a respeito do assunto e, em sua argumentação, afirmou que o excerto utilizado na frase seria apenas uma opinião da autora e que sua inserção no exame seria “uma escolha adrede, ardilosa e discrepante do que se tem decidido sobre o que se deve ensinar aos nossos jovens”. Na sequência, ressaltou que o Ministério da Educação deveria ser questionado a respeito dessa abordagem, uma vez que o que ele denomina teoria de gênero já deveria “estar sepultado”.

Fica evidente que os parlamentares discordam da discussão de gênero proposta na prova. Até aí, seriam duas opiniões isoladas, mas não são. As postagens de Feliciano e Bolsonaro tiveram, respectivamente 19150 e 56093 curtidas até o momento. Fica a questão: por que tanta gente ainda se incomoda com a discussão de identidade de gênero, uma vez que a obra de onde foi retirado o excerto em questão foi publicada pela primeira vez em 1949?

Parece-nos que mais de 60 anos depois que essas ideias começaram a ser disseminadas, as pessoas ainda partem de uma lógica simbólica para compreender o que é um homem e o que é uma mulher. Isso nos parece evidente, por exemplo, no texto referente ao “Estatuto da Família” que está em trâmite na Câmara. Esse documento define uma família como a união entre um homem e uma mulher ou um dos pais e seus filhos. Tanto na fala dos parlamentares quanto no texto do referido estatuto parte-se de uma definição biológica de gênero para universalizar o desejo de cada um no mundo.

Para a Psicanálise, a determinação biológica não é suficiente para que cada ser determine a que gênero pertence. No texto Os complexos familiares na formação do indivíduo, Lacan (1938) afirma que a família é condicionada por fatores culturais, à custa dos fatores naturais. No mesmo texto, o psicanalista explica a ideia de que uma família é muito mais do que uma estrutura elementar, mas um complexo, que reproduz certa realidade que não é fixa.

Sendo assim, a afirmação a princípio irônica de Bolsonaro de que “João não nasce homem e Maria não nasce mulher” faz todo o sentido, uma vez que ser mulher e ser homem vai muito além do sexo biológico.

Mas qual seria, então, o grande problema de discordar de De Beauvoir ou de concordar com Bolsonaro ou Feliciano, afinal vivemos numa democracia em que cada um é livre para ter as próprias opiniões? Problema nenhum se esse posicionamento não fosse disseminado como lei e se não causasse sofrimento a quem não se sente feliz com o gênero que lhe foi atribuído ainda no ventre materno. Não haveria problema se pertencer a um gênero não fosse justificativa para violência, fato que, inclusive, foi tema da redação desse mesmo exame neste ano.

Felizmente, mais de 7 milhões de jovens tiveram a oportunidade de pensar a esse respeito no último final de semana. E cabe a nós, educadores, manter viva a discussão, para que nossos alunos não sejam bem-sucedidos apenas na realização de avaliações, mas, sobretudo, para que possam tornar esse mundo um lugar onde cada um seja livre para ser o que é e não o que lhe foi imposto.

Renata Costa é mestre em educação e pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisa Produção Escrita e Psicanálise – GEPPEP, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, onde, atualmente, realiza sua pesquisa de doutorado.

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