Da epigenética e das escolhas do futuro 17/04/2013

Por Helainy Andrade

Agora podemos escolher as surpresas que nos reservam o futuro – ao menos se o assunto for saúde.

Mais do que nunca, podemos aceitar determinadas doenças, se quisermos, ou não. A genética ficou até mais simpática depois do sequenciamento do genoma humano, e mais ainda agora, com a epigenética, campo que estuda as interações causais entre genes e seus produtos, que resultam no fenótipo.

Houve aquele tempo em que fazer um teste genético e receber um diagnóstico positivo para uma doença deixava a pessoa num estado semelhante a de quem aguarda uma sentença de morte. Mas, depois de decifrado nosso código genético, o que se encontrou foi que sua determinação não é tão fatalista assim. Ele inscreve no nosso corpo uma tendência que pode não se realizar. Ao contrário, pode passar a vida toda silenciosa, sem que seu portador saiba dela. Podemos ter uma alteração genética e não manifestá-la; é a diferença entre a mutação genética e a manifestação gênica.

Chegada à pós-decodificação, a genética nos mostrou que a programação genética não é a última palavra. Imagine duas pessoas com mesma combinação genética que produz diabetes, por exemplo: uma pode ficar doente e a outra, não. Isso ocorre porque há uma interferência externa que age sobre o DNA. No caso da diabetes, a prática de atividade física tem o poder de reprogramar as células musculares para que elas consumam mais açúcares e gorduras e, com isso, manter sob controle os níveis de glicose no sangue. Diabetes, portanto, evitada. A epigenética é esse processo químico que, nesse exemplo, evitou a diabetes e mudou o curso da ex-futura doença. Com a epigenética nosso destino está menos trágico.

Tem acontecido algo semelhante numa parceria, até então inusitada, entre genética e psicanálise, que se renova todas as manhãs de segunda-feira na Clínica de Psicanálise no Centro de Estudos do Genoma Humano, na Universidade de São Paulo, dirigida por Jorge Forbes e Mayana Zatz. Os resultados desse trabalho, publicados em artigos e em congressos internacionais, têm mostrado que o quadro clínico dos pacientes, portadores de desordens musculares, em sua maioria distrofias, apresenta uma sensível diferença entre o antes e o depois do início do tratamento psicanalítico. Os pacientes param de piorar ou lentificam a piora de sua condição médica geral. Em todo caso, lembremos que uma característica dessa doença é, exatamente, ser progressiva. O que os dados desse estudo mostram é que esse tratamento pela palavra está interferindo no curso da patologia. A psicanálise está mexendo em seu ritmo, de forma a frear o avanço da doença.

Nessa interlocução cada vez mais afinada entre psicanálise e genética, estaríamos autorizados a pensar que um tratamento que faça a palavra incidir sobre o corpo pode produzir processos internos, químicos inclusive, que alterem a expressão do que o mesmo corpo outrora havia programado fazer? Ou, perguntado de outro modo: se pudermos tocar um corpo por meio de um uso muito preciso da palavra, tal como um instrumento cirúrgico, podemos permitir uma reprogramação celular?

Atualmente o que tem tomado o interesse dos geneticistas envolvidos nos estudos da epigenética é chegar a um medicamento que possa devolver a memória do epigenoma saudável ao organismo. Isso equivale a corrigir um gene desligado que deveria estar ligado, ou vice-versa. Pode soar estranho agora, mas é o que teremos num futuro próximo. Algumas fórmulas já estão aprovadas para uso no tratamento de certos tipos de leucemia e linfoma e agirão recuperando as marcas epigenéticas que reprimem sua proliferação. Para além dos fármacos, também tem sido creditada muita importância a tudo o que produzir efeitos sobre o corpo, tanto para o bem, como é o caso da já referida atividade física e a alimentação, como para o mal, como o tabaco.

Nesta série de intervenções sobre o corpo também se inclui a psicanálise de Lacan, que faz da palavra um instrumento potente para alterar o arranjo que uma pessoa faz com aquilo que lhe acontece na vida. Não podemos recusar um DNA, mas podemos decidir se vamos facilitar sua expressão, ou não. Com o gene não há possibilidade de diálogo, mas com o portador dele sim, e este faz escolhas, toma decisões e inventa saída para seus impasses.

Neste sentido, podemos extrair duas consequências: na parceria entre a psicanálise e a genética se constrói uma nova clínica e uma nova ética; a epigenética aumentou em muito nossa responsabilidade sobre o futuro que queremos fazer para nós. Melhor assim!

Helainy Andrade é psicanalista em Varginha-MG e pesquisadora na Clínica de Psicanálise do Centro de Estudos do Genoma Humano da USP