Da depressão surda ao segredo da feminilidade 05/12/2013

Por Liége Lise

A mulher sempre terá um segredo, uma falta que ninguém, nem mesmo ela, sabe o que é

O delicado piercing de diamante no nariz é uma marca que ela não quer que saia da pele, lembrança do seu passado de festas, dos “embalos de sábado à noite”, e da carreira de modelo fotográfico na adolescência.

Atualmente com 30 anos, Suzane é portadora de Ataxia Espinocerebelar. Ela não responde a doença de forma resignada, mostra resiliência e determinação. Cadeirante, mora só, faz sua própria comida e responde por seus cuidados pessoais. Vai ao banco, supermercado, locadora, faz aula de natação e equitação, não falta à fisioterapia, às consultas médicas e ao tratamento psicanalítico. Porém, na maneira como Suzane lida com essas situações e na apologia que faz em ser independente e dispensar a presença do outro, parece um “homem de saia”, negando-se a ser ajudada pelas pessoas. Mostra uma postura fálica, rígida e combativa.

Ao final da sua primeira entrevista na Clínica do Centro de Estudos do Genoma Humano da USP, Jorge Forbes pontuou: “Você reage bem. A expressão da doença avançou pouco. Mas esse afastamento das pessoas mostra que você está no limite, num equilíbrio frágil. Diria que você está numa Depressão Surda”. Em uma junção quase surrealista, aliando duas coisas tão distintas, a depressão e a surdez, Forbes apontou para uma postura defensiva frente ao encontro com o outro, em especial o masculino e, frente à sua feminilidade, que merecia ganhar voz e escuta.

No início do tratamento, Suzane mencionou o medo de mexer no que chamava o seu “equilíbrio”. Em uma sessão disse: “A doença tá quieta, não quero acordá-la. Se eu mexer nessas coisas que me fizeram sofrer será que não vou piorar?” Digo-lhe que falar da doença e das coisas que ela ficava mantendo caladas poderia deixá-la mais leve. Não querer saber dessas coisas era uma estratégia de negação, como a que ela adotava ao se “enfeiar” e usar os seus dois cachorros Pit Bulls para manter as pessoas afastadas dela.

Na sessão seguinte, ela disse: “Fiquei pensando no que você me disse que eu me enfeei. Eu enterrei a mulher e a vaidade junto com a doença”. Quando lhe perguntei acerca de sua sexualidade, respondeu-me:“Eu excluí essa parte da minha vida. Não quero saber mais de nada. Esse medo… não deixo ninguém chegar perto. Medo de ser rejeitada, de sofrer. Tenho medo de me decepcionar. Dói muito.”

Trabalhar a sexualidade, a delicadeza, a sedução como exercício de vida sem representar uma ameaça e uma fragilização diante da doença foi a direção clínica adotada. A depressão surda estava alicerçada na crença de que o amor é tolice, de que ser mulher é sinônimo de sofrimento e de que homem é tudo igual.

No haras que frequentava, onde fazia as aulas de equitação, conheceu Paulo. Resistia muito aos assédios dele. Implicava com o fato dele fazer happy hour com os amigos, de ser Corintiano, de ser apaixonado por jogo de truco e não gostar do mesmo estilo de filmes que ela. Eu lhe disse: “Sim, ele tem um defeito grave: ser Corintiano! O resto tá tudo dentro do esperado. É homem! Tá tudo certo!” Então me disse: “Ele já chegou até o sofá. Ele é muito esperto. Chegou ganhando as cachorras. Estamos combinando de irmos à praia no próximo feriado. Ele tá comendo pelas beiradas, e eu, to deixando… acho que quero ser assoprada. Como mingau quente”.

Após seis meses de tratamento, na entrevista de retorno com Jorge Forbes e Mayana Zatz, ela disse que mudou a relação que tinha com a doença, antes inimiga a ser combatida, passou a fazer as pazes com a doença. “Eu escolhi a doença e estou lidando bem melhor”. Concluí que muitos dos problemas era ela quem os criava. Confundia isolamento com independência, por medo de se envolver afetivamente. Contou que mudou a Carteira de Motorista Especial para Deficiente e comprou um carro adaptado.

No auditório do Genoma, no momento posterior à apresentação em que se dá a discussão do caso pela equipe, Forbes ponderou: “ela fez a passagem da depressão surda para a feminilidade. Não é uma questão de Serotonina. Na base da feminilidade tem um segredo. A feminilidade tem alguma coisa que não se escuta”. Um exemplo: o título do filme de Almodóvar, Fale com ela. Como fazer uma mulher falar? Mulheres falam entre si, mas não com os homens. Como fazer uma mulher falar com um homem? Muitas vezes ela vira um homem para falar com o homem. A mulher sempre terá um segredo. Segredo é o corpo dela, que tem uma falta que ninguém, nem mesmo ela, sabe o que é.

Recebi recentemente seu convite de casamento. Junto veio um post-it que dizia: “descobri que receber também é amar. Vou aceitar o cuidado dele. Afinal, nada é para sempre…” 

Liége Lise é psicanalista. Membro do IPLA – Instituto da Psicanálise Lacaniana- SP.