Por Claudia Fabiana de Jesus
O paciente questiona a construção de seu diagnóstico de bipolaridade e de como este carimbo marcou sua vida.
Ramos, 37 anos, chega ao consultório encaminhado pelo psiquiatra com diagnóstico de transtorno bipolar. Presa a essa nomeação da doença também estava sua vida. Com histórico de três internações em instituições psiquiátricas, fazia tratamento há vinte anos. Apresentava intenso e excessivo uso de medicações psicotrópicas, demandando incessantemente por aquela que aplacaria sua angústia. Teve o primeiro surto aos 17 anos, quando a namorada rompeu o relacionamento. O segundo episódio foi quando, sem sucesso, tentou sair do trabalho com o pai. Já terceira internação foi quando da morte de seu pai, há dez anos.
As crises se referiam à presença de elevação persistente do humor e da atividade associada a sentimento intenso de bem-estar, aumento da sociabilidade, do desejo de falar, da energia sexual e uma redução da necessidade de sono. Além disso, ideias delirantes, de grandeza, alucinações, com agitação, atividade motora excessiva e fuga de ideias. Havia, posteriormente, sinais depressivos, rebaixamento do humor e de redução da energia e da atividade.
Primogênito, era distante da mãe, tinha pouca afetividade e sensação de desamparo. O pai era uma figura rígida e autoritária. Era com ele que Ramos trabalhava no comércio e buscava uma identificação, porém, se sentia desvalorizado, pois nada que fazia era reconhecido. O paciente inicia o tratamento muito fragilizado, com alterações no sono, queixas de apatia e falta de interesse na vida, com muito medo de, novamente, ter uma crise.
Ramos chega às entrevistas preliminares valorizando a patologia transtorno bipolar, algo de conhecimento médico científico, esperando retorno da psicanalista, lugar este do “suposto saber”. Pergunto curiosa: Como é seu transtorno bipolar? Visando, assim, a retirá-lo da nomeação universal do mal-estar e subjetivar seu sofrimento.
No início do tratamento, Ramos encontrava-se numa posição passiva diante da doença, chegava de cabeça baixa, com compaixão de si mesmo, com a repetição das queixas. Imito-o, colocando-me de cabeça baixa, repetindo suas palavras costumeiras, fazendo o espelhamento da sua postura. Nesse momento, Ramos ri e encerro a sessão.
Como os ramos, Ramos ficava preso ao diagnóstico e a profecia gerada por este, com sofrimento antecipatório, significativa insegurança, não saía de casa e não tinha nenhuma atividade. Os restritos ângulos do seu quarto eram seu porto seguro. Na espera, nada arriscada, da mágica do faixa preta, demandava que as medicações lhe dessem as respostas. Suas indagações não se endereçavam ao que ele queria para si, qual a sua parcela no sofrimento que sentia, mas sobre o que os remédios poderiam fazer por ele, as interações químicas e efeitos dos mesmos.
Ramos buscava respostas sobre si e para si, na expectativa de que as mesmas estivessem prontas e viessem do outro, da medicação prescrita pelo psiquiatra e agora, ao que a psicanalista dissesse para ele fazer. No tratamento psicanalítico essa demanda não foi atendida, deslocando o paciente de sua posição de vítima, acomodado nesse incômodo, diante da nomeação universal do seu sofrimento, para uma posição de responsabilidade diante de seu singular mal-estar.
Em umas das sessões o paciente diz: “Não posso fazer muita coisa na vida, pois sou bipolar. A doença me estaciona”! Intervenho: Realmente o trânsito continuará existindo e você espera que o guincho te pegue? Nesse momento, Ramos fica em silêncio e a sessão foi encerrada.
O ato de ver-se pelas lentes da bipolaridade foi sendo desconstruído ao longo da análise. Foi um momento de difícil manejo clínico, devido à nova angústia do não saber mais de si, uma vez que ele ficou sem as referências das descrições sintomáticas dos manuais online de psiquiatria.
O paciente na sessão afirma: “Não sou normal como os outros, por causa da doença, mas agora parece que posso fazer coisas normais e isto é estranho…” Pontuo: Fazer coisas que os outros fazem para você parece ser algo novo, estranho e interessante, porém, é o que você quer fazer?
Com as identificações desbastadas, Ramos pôde ser mais do que um bipolar. Passou a se interessar pela linguagem digital e seus códigos. Sua curiosidade diante deste novo mundo o fez criar programas de computador e, assim, passou a trabalhar nessa área. Começou aulas de natação e violão, ampliou seu convívio social e relacionamentos. A direção do tratamento se deu a partir da incidência sobre seu gozo paralisante para a invenção de respostas criativas, nas quais o paciente se incluiu em outras formas singulares de satisfação.
No último retorno com o médico psiquiatra, o paciente questionou acerca do “desmame” das inúmeras medicações e afirmou estar bem e se sentindo muito melhor. Está mais aberto para lidar com as perdas e mais íntimo de suas inseguranças. Ramos questiona a construção de seu diagnóstico de bipolaridade e de como esse carimbo marcou sua vida. Fala que tomou muito remédio durante sua vida e agora sabe que nem para tudo tem remédio e que não precisa ter mesmo.
Afirma que saiu das expectativas dos outros sobre ele, principalmente as do pai, e está se sentindo um pouco mais livre. Em uma das consultas diz: “Eu vim para a análise querendo que você confirmasse o ser bipolar, eu era um parasita de mim mesmo. Eu saí do ser bipolar para alguém que está aberto para a vida. Eu não preciso ser nada, eu vou sendo eu, eu sou uma pessoa que busca e que agora quer viver”.
Claudia Fabiana de Jesus – Psicóloga e Mestre em Psicologia da Saúde
clafaje@yahoo.com.br