Por Emari Andrade
Será que vivemos em tempos em que a autoridade do professor precisa ser resgatada?
Nesta época do ano, avaliar, corrigir provas e trabalhos, fechar notas, preparar recuperação são verbos recorrentes na boca de professores. Até a mídia se interessa em encontrar a justa medida. No dia 11/10/2013, a Folha de S.Paulo publicou, no Caderno Cotidiano, a notícia de que a Secretaria Municipal de Educação da Prefeitura de SP pretende endurecer regras de avaliação do ensino fundamental, para, de acordo com o secretário Antonio Cesar Callegari, “resgatar a autoridade do professor”.
Será que, em se tratando de professor de ensino superior, ela precisa ser resgatada? Essa questão borbulhava em minha cabeça, numa noite de quinta-feira, ao observar, ao vivo e com muitas cores, uma docente da Universidade de São Paulo avaliando seus alunos da graduação. Tentando aprender algo a respeito da formação de professores, passei quatro horas observando o que seria, a princípio, o ato de receber e corrigir os trabalhos de final de uma disciplina.
Que engraçado! Ao invés de terem sido chamados para a sala de aula, eles foram convocados para um saguão. O lugar era bonito, amplo e espaçoso. Previamente, a monitora da turma havia organizado painéis com documentos e fotografias. Quando os alunos chegaram, não fizeram jus ao espaço. Com certa “vergonha narcísica”, encaminharam-se para uma mesa ao fundo e empilharam seus trabalhos. Sempre tinha alguém querendo colocar ainda mais para baixo. Todo mundo reclamava. Deveria ter incluído mais um tópico, mais um autor, mais uma atividade. Mereceria uma boa nota?
A docente chegou pontualmente. Foi dizendo, já da escada: “- Como assim esses trabalhos todos amontoados? – Como as pessoas vão ver? Espalhem com harmonia estética.” Foi então que reparei melhor no que estava acontecendo. A tal “avaliação” era uma exposição pública. No primeiro painel, estava o título: Operação Angola. No segundo, o histórico dos trabalhos, explicando que cada um dos alunos da USP tinha produzido, como sua “prova”, um material a ser enviado para um correspondente no Curso Magistério do Libolo.
Vieram umas cinquenta pessoas. Na presença do público, os envergonhados se transformaram em anfitriões. Dentre essas pessoas, estavam dois angolanos, que, por feliz acaso, conheciam os correspondentes. Aparentemente, os alunos esqueceram que estavam sendo avaliados: viraram criancinhas curiosas. “-Você acha que a Maria vai entender esta frase?”, “- Eu estou mandando um pen drive para o João. Vai ser difícil ele conseguir abrir?”, “-Por favor, leia esta atividade. Você acha que vai ser útil para o Jorge?”
Os passantes folhearam os trabalhos e conversaram com o redator. Os alunos folhearam os trabalhos uns dos outros. Teve gente que gostou tanto do que viu que copiou no caderno ou registrou no celular. O que era para ter durado uns trinta minutos acabou umas quatro horas depois.
Depois de um tempo, a docente foi para um canto da saguão. Olhou cada trabalho, detalhe por detalhe. A lápis, fazia anotações no seu caderno. Ao longe, vi que checava se os alunos tinham feito o mínimo necessário (desenvolver dez temas previamente compactuados) e se atinha aos diferenciais. Ao observar a produção dos alunos durante a exposição, percebi que nenhum era igual ao outro. Não se pareciam na forma, tampouco no conteúdo específico. Era como se estivesse escrito na capa: “Esse trabalho foi pensado pelo aluno X para resolver um problema Y de alfabetização”.
Algumas vezes, chamou alguém, dizendo claramente: “- Assim, é caso de recuperação. Você prefere refazer em 48 horas ou deixo você?”. Ninguém se queixou nem questionou. Fiquei pensando com os meus botões. Caso eu tivesse testemunhado uma noite de prova convencional, será que a docente não estaria clamando por dispositivos para lhe devolver a autoridade? Como ela não precisou de nada disso, é de se perguntar como fez para promover a passagem na qual a vergonha narcísica deu lugar ao entusiasmo, à alegria e à curiosidade.
Destaco dois bisturis: o primeiro é a coragem. A docente não tinha visto os trabalhos. Podia ter chamado 50 pessoas para testemunhar seu fracasso. Esse risco não a fez recuar frente à invenção necessária de um ambiente educativo. O segundo é o manejo da transferência. Ao invés de chamá-la para si, a docente a diluiu, multiplicando os personagens eleitos como interlocutores. Os trabalhos não foram escritos para ela, mas, sim, para o correspondente angolano. Paradoxalmente, ao se apagar ela se tornou presente. De longe, percebi que os efeitos dos textos sobre ela foram grandes. No meio da leitura, apareciam risos, arrepios, gargalhadas, cara de espanto, de deslumbramento.
Antonio Cesar Callegari que me perdoe, mas, nestas alturas da vida, achar que os professores precisam dele para ter sua autoridade resgatada é, no mínimo, paternalista e pretencioso.
Emari Andrade é professora de língua portuguesa, faz doutorado em educação na Universidade de São Paulo e é monitora do curso online do IPLA