Curiosidade, coragem e cara de pau: os 3 “Cs” para uma docência livre 06/03/2014

Por Emari Andrade

O modo como o candidato se relaciona com as suas próprias palavras, bem como se endereça aos colegas que, naquele momento, fazem papel de seus arguidores, é uma forma de testemunho da sua castração

No dia 27 de fevereiro, às 13h20, a Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo concedeu à Profa. Dra. Claudia Rosa Riolfi o título de Livre Docente, após a defesa de sua tese: “A Língua Espraiada: responsabilidade subjetiva na formação de professores”. Em linhas gerais, trata-se de um trabalho em que, tomando-se como objeto de análise a produção oral e escrita de alunos de diferentes níveis de escolarização, constata-se um novo sintoma com relação aos modos de utilização da língua materna: a língua espraiada. A língua espraiada é o modo desarticulado e metonímico de utilização da língua portuguesa, seja para ler, escrever, falar ou analisar textos. Como antídoto para esse sintoma, a tese convoca os professores à responsabilidade subjetiva, que, longe de qualquer caminho moral, implica a invenção de soluções singulares para essa epidemia.

Meninos, eu vi. Muitos podem pensar que acompanhar as etapas de trabalho foi perda de tempo. Podem, inclusive, imaginar que um concurso desse tipo, institucionalizado no Brasil desde 11 de setembro de 1976, é apenas burocracia universitária. Não concordo. Baseada na minha experiência de ter estado lá, posso afirmar que quem participa do processo não sai ileso de seus efeitos. Ele entra espectador e sai testemunha de uma transmissão cujos afetos ressoam no corpo.

Por um lado, a plateia não tem como não aprender conteúdos relevantes durante as quatro etapas do concurso. 1) leitura de uma prova escrita – em que o candidato disserta a respeito de um dos dez pontos selecionados pela banca; 2) arguição do memorial – em que o candidato reconstrói, a partir das provocações da banca, seu percurso profissional e acadêmico; 3) defesa da tese – no caso desta, de uma elaboração original que testifica a produção do conhecimento em uma área; e 4) avaliação didática – que é feita a partir do sorteio de um dos pontos, cujo tema será desenvolvido pelo candidato em forma de plano de aula ou de curso (a depender do fôlego de cada qual). Nessa etapas, comentam-se e apresentam-se obras, discutem-se conceitos, analisam-se textos.

Por outro lado, ao escutar o modo como o candidato se relaciona com as suas próprias palavras, bem como se endereça aos colegas que, naquele momento, fazem papel de seus arguidores, pode-se testemunhar uma maneira pouco vulgar da pessoa, no jargão da psicanálise, “dar testemunho de sua castração”.

Como isso é possível? Pela transmissão de três afetos: 1) Curiosidade: diante de questões da banca como: Como chegou a encontrar o autor X? Como conseguiu entender o conceito Y? Como descobriu tal fenômeno entre os jovens? A resposta foi dada pela narrativa de cenas em que, a partir de uma inquietação, a candidata foi buscar respostas em diversas áreas do conhecimento, sondar as estantes das livrarias, testar suas hipóteses em diferentes tipos de textos, conversar com pessoas de várias classes sociais e etárias etc; 2) Coragem: argumentar com uma banca formada por docentes de diferentes áreas (psicanálise, linguística e educação) já é um desafio. Defender uma tese que articula as três áreas e propõe algo diferente do que já realizado na literatura da área é ainda maior. A docente não recuou. Com coragem, defendeu sua tese e pontos que, para ela, não estavam calcados na filosofia ou linha teórica de um autor. Demonstrou conhecer as implicações teóricas de sua tese e, com relação ao ensino, mostrou que sua preocupação estava fundamentada em algo íntimo de si, do qual não abria mão; e 3) Cara de pau, para reconhecer uma formulação que não estava clara ou uma análise errada. Nesses momentos, longe de buscar justificativas, a candidata reconheceu o equívoco e, imediatamente, improvisou uma nova formulação. Ter cara de pau também acarreta em um modo leve de encarar certos momentos que não foram muito positivos na carreira, como, por exemplo, a falta de reconhecimento dos pares, dos alunos ou da instituição. Ao invés de alimentar um rancor destrutivo, a candidata mostrou tranquilidade ao afirmar que deixa para “a natureza cuidar”.

Se formos contar em horas, somente as etapas públicas do concurso foram 15, durante as quais, contrariando a lógica biológica de cansaço do corpo, vi pessoas rindo, fazendo esforço intelectual, anotando frases da candidata ou da banca, fazendo gesto de concordância ou de negação, enfim, entusiasmadas, ligadas ao percurso do qual estavam sendo testemunhas. Foi a partir desse movimento que, para concluir, exploraremos porque curiosidade, coragem e cara de pau seriam, em nossa avalição, três dos principais afetos a serem transmitidos pelo formador àquele que é formado.

A curiosidade é o combustível que alimenta a docência. Somente sendo muito curioso o professor poderá, desprendendo-se das interpretações já prontas da realidade educacional, inventar formas diferentes de ensinar. A exemplo das crianças, que são movidas pelo desejo da descoberta, o professor curioso sempre busca testar outros modos promover o encontro do aluno como o saber.

A coragem sustenta o professor no seu desejo de um trabalho diferenciado. Trata-se da defesa de um ponto de honra. Em tempos em que a tendência é a homogeneização das práticas de ensino, é preciso ter coragem para sustentar entre os pares a singularidade e suportar a angústia de ser diferente.

A cara de pau é o afeto que liberta o professor das amarras sociais. Livre da preocupação de ter de agradar todo mundo e de que o erro é algo aprisionador, o professor pode valer-se dessa liberdade para colocar sua criatividade a serviço da invenção de soluções para os problemas educacionais. Cheer!

Emari Andrade é professora de língua portuguesa, faz doutorado em educação na Universidade de São Paulo e é monitora do curso online do IPLA