Cultura sempre acontece? 24/07/2013

Por Emari Andrade

Milhares de eventos culturais acontecem todos os dias nas grandes cidades. Mas, como aproveitar o que acontece ao seu redor?

A primeira acepção do termo ignorância, dada pelo dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa é: “estado de quem não está a par da existência ou ocorrência de algo”. “Algo” será lido, neste texto, como: aquele que não está a par da existência de si e, por isso, ignora o que acontece no lugar geográfico em que habita. Trata-se da situação em que, infelizmente, se encontram muitas pessoas. Não desfrutam a vida, não por falta de oportunidade, mas por ignorarem que estão vivas, por não escolherem atrações das quais possam gostar. Vivem em uma espera mórbida de que algo ou alguém lhe apresente a chave da felicidade.

É triste, mas está mais perto que imaginamos. Em pleno século XXI, pessoas diariamente navegam na net, andam de ônibus, pegam metrô, mas é como se estivessem vagando pela vida, como se o próprio corpo estivesse desconectado de si. Por que isso acontece? Porque, tal qual como colocado pela psicanálise, existe uma diferença entre o corpo pulsional e o biológico.

O corpo biológico é matéria comum entre homens e animais e está ligado à sobrevivência física, ao se manter respirando. Já o pulsional, ou erógeno, é o que distingue o ser humano dos demais seres da natureza. Está nele nossa capacidade de apropriação do saber instituído pela cultura, de rir, chorar, dançar, apreciar uma bela poesia, uma escultura, enfim, os espetáculos mais fascinantes da vida, que tocam e podem trazer transformação em nosso corpo.

Para alguém poder desfrutar da cultura que acontece em sua cidade e sentir seus efeitos, essas duas instâncias precisam estar unidas. Caso contrário, anestesiadas pela parte doente do psiquismo humano que não lhes permite se apropriar do que está à sua volta, vão se manter na mais perfeita (e horrível) ignorância.

Foi nessa posição que muitos se mantiveram durante o período em que aconteceu a 17ª edição do Cultura Inglesa Festival 2013, realizado em cinco cidades paulistas: Campinas, Santos, São José dos Campos, São Paulo e Sorocaba. O evento levou gratuitamente para essas cidades diferentes atrações de shows, teatro, cinema, exposições de gravuras, pinturas e desenhos.

Divulgado nas redes sociais, jornais e inclusive nas estações de metrô, onde circulam diariamente milhares de pessoas, o festival não foi aproveitado por muitos. Não por não gostarem das atrações da programação, mas simplesmente porque fecharam os olhos às informações que estavam à sua frente ou não se permitiram ir, afinal, na regência de seu modo de satisfação mortificante: é sempre o outro que pode se autorizar a ser feliz, não ele próprio.

É pena. Perderam uma ótima oportunidade de verem pessoas conectadas, de serem tocadas pelo funcionamento do novo laço social da pós-modernidade. Ao invés do excesso de palavras, mais ligado à prosa, as atrações prezaram pela beleza sintética da poesia, a crueza, a surpresa e a multiplicidade dos desejos do ser humano. As pessoas estavam juntas não por uma mesma razão ou causa. Educadamente, eram solidárias ao modo como cada uma decidiu apreciar aquele momento. Sem palavras, sem explicações, a cultura manifesta ali era a que tocava o corpo de cada um de maneira diferente. Era possível ver a manifestação de como, cada qual, ao se encontrar com o mais íntimo de si, podia fazer ressoar no outro a sensação de estar vivo.

Enfim, muita cultura acontece. Quem procura, acha. Para que haja essa busca, no entanto, é preciso que as pessoas assumam o leme de suas vidas e não deixem que o mar as carregue, deixando-as à deriva. Como colocou Jorge Forbes, “tá ligado?” para a cultura que acontece ao seu redor?

Emari Andrade é professora de língua portuguesa, faz doutorado em educação na Universidade de São Paulo e é monitora do curso on-line do IPLA

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