CTI no divã 25/02/2016

Por Italo Venturelli

Diante do que os exames não revelam e escapa ao sentido e explicação, o bom clínico adverte, na persistência dos sintomas, procure um psicanalista

O chamado era urgente. No CTI, um paciente apresentava crises convulsivas subentrantes e constantes, o que denominamos Estado de Mal Epiléptico. Teríamos que sedá-lo para realizarmos uma tomografia devido à gravidade do caso e intensa agitação psicomotora.

Ao chegar, a cena estava montada. Vários enfermeiros ao redor do leito, com suas armas medievais em mãos e o doutor, como um bispo da inquisição, à procura de uma confissão dos pecados. Havia uma série de agulhas, seringas, tubos, fios, luvas e máscaras.

A conduta sob o ponto de vista médico estava correta e toda a atenção estava sendo dada ao paciente, no que se chama de emergência médica. Os protocolos estavam adequados. Acontece que logo ao adentrar no recinto, conheci as feições da vítima.

João, o que houve com você? Virou-se para mim, fitou-me nos olhos e disse bem baixinho, só para que eu ouvisse: Ele não quis casar comigo!

A partir daí, ambos fomos parar na fogueira. Uma enxurrada de palavrões, citações, broncas, arrepios, choro e ranger de dentes; alguns rituais de exorcismo e tudo mais que possa ser dito e feito quando alguém acredita que foi enganado.

Por mais que a situação fosse se acalmando sob o ponto de vista médico, o furor curandi da equipe foi só piorando. Depois de alguns minutos, conversando com os colegas, consegui que o desamarrassem, retirassem as algemas, os cabos, os ganchos, as espadas, tudo o que amordaçava o seu corpo.  Fiquei ali ao lado dele, quieto, acompanhando-o com o olhar e dando o tempo para ele se aprumar, respirar e começar a falar.

Namoramos três anos e ele prometeu casar-se comigo. Agora diz que tem outros planos e que vai mudar de país. Insisti, supliquei, fiquei de joelhos, mas ele ficou irredutível, pegou suas coisas e partiu. Desesperado, tomei centenas de comprimidos, álcool e até desodorante. Comecei a vomitar e vim acordar aqui.

Pedi ao colega para prosseguir com alguns exames e para deixá-lo ali por mais algumas horas.

Recebi mais uma bronca, pois ali não era lugar para fingidos e que havia um protocolo a ser seguido. Como o colega plantonista era vascaíno, aproveitei e disse que acreditava que seu time iria reagir e não cair para a segunda divisão. Como resposta, fui zoado das minhas palmeiras.  Por fim, ele concordou em deixá-lo mais um pouco na UTI.  Já no quarto, ouvi João, sem me aprofundar em suas questões, pois ele já fazia tratamento psiquiátrico. Com seus familiares ficou a preocupação com a grande quantidade de medicações que havia em sua residência. Ele agradeceu e marcou atendimento.

Na formação do médico existe a disciplina Psicologia Médica, que percorre alguns aspectos de nosso aparelho psíquico. Também aulas de psiquiatria onde se aborda as principais patologias como a esquizofrenia, a paranóia, mas não há orientação sobre a maioria dos casos ditos emocionais.

Qualquer queixa que não se encaixe anatomicamente, que subverta a fisiologia ou que não tenha correlação com os exames, é dito ao paciente que a questão é emocional, como se fosse de causa menor ou sem relevância clínica. Alguns colegas medicam com ansiolíticos ou antidepressivos e o paciente é encaminhado para o serviço de psicologia ou psiquiatria. Na maioria das vezes o paciente se recusa a qualquer tipo de tratamento e fica perambulando, buscando outros diagnósticos e opiniões ou vai para a medicina alternativa e em busca medicações milagrosas. Sempre lhes digo: fiquem tranquilos, eles vão voltar. Os sintomas têm um saber inconsciente que quer falar. Na estranheza e esquisitice do que se mostram no corpo há uma verdade que poucos suportam escutar, foi essa a orelha que Freud inaugurou. Diante do que os exames não revelam e escapa ao sentido e explicação, o bom clínico adverte, na persistência dos sintomas, procure um psicanalista. 

Italo Ventureli é neurocirurgião e psicanalista. Diretor-técnico do Hospital Bom Pastor em Varginha – MG.

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