Coratio: não se calar nunca mais 05/11/2015

Por Ana Caroline Castro

O filme dá voz a quem participou desse projeto de expor os militares e sua política de Estado. Eles acreditavam que após terem contado sobre as barbaridades, elas nunca mais aconteceriam

Tão importante quanto falar, é ter quem escute. O testemunho sempre é feito para alguém. Há exatos 30 anos um livro, grande testemunho de uma época, aparecia nas prateleiras das livrarias: era o “Brasil: Nunca Mais”. Com depoimentos e relatos de tortura, durante a ditadura militar, a obra se tornou um marco na luta pelos direitos humanos. Em apenas duas semanas ocupava a lista de livros mais vendidos do país.

As denúncias das violações só puderam vir à tona porque um corajoso grupo de cerca de 30 pessoas se arriscou. Eles copiaram e analisaram praticamente todos os processos da Justiça Militar entre 1964 e 1979. Tudo de forma clandestina. E após seis anos de trabalho publicaram o livro com as provas de que o Estado Brasileiro torturou e matou seus cidadãos durante 21 anos. Quando o livro foi lançado, seus autores permaneceram anônimos. O ano era 1985 e o receio de alguma retaliação não era sem fundamento.

Com o objetivo de contar a história por trás do livro é que decidimos fazer um documentário: Coratio. O filme dá voz a quem participou desse audacioso projeto de expor os militares e sua política de Estado. Contamos como o livro foi feito e ouvimos relatos de pessoas que foram torturadas. Mas não poderíamos parar por aí. O título do livro provoca uma reflexão: nunca mais. Os participantes do projeto tinham essa esperança. Eles acreditavam que após terem contado sobre as barbaridades, elas nunca mais aconteceriam.

Mas, infelizmente foram poucos os que verdadeiramente escutaram os gritos e se engajaram em uma luta pelo fim da violência e tortura. Coratio é um filme que também trata da violência de hoje. Passados 30 anos após o lançamento do livro, o “nunca mais” permaneceu como utopia. A democracia brasileira é ainda mais violenta do que o período da repressão. Em 2013, o Brasil registrou 56 mil mortos por homicídio, destes 77% eram negros. Entre 2009 e 2013, a polícia brasileira matou 11.197 pessoas – uma média de 6 pessoas por dia. Assistimos a um genocídio da juventude negra e periférica. Vivemos em uma guerra civil não declarada.

O psicanalista Moisés Rodrigues da Silva Jr, entrevistado no filme, foi quem disse a frase que abre esse texto. Para ele, a tortura, a violência física acontece no corpo de uma pessoa. É um indivíduo que fica vulnerável, entregue, dilacerado e só. Mas o trauma é ainda maior quando essa pessoa não tem seu relato reconhecido, quando não há para quem testemunhar. É nessa posição de não reconhecimento social que está localizada a massa do trauma. É um trauma que alguém carrega, mas o social como um todo se encarrega de não ouvir. Cumprindo o circuito traumático.

Primo Levi foi um sobrevivente do campo de concentração nazista de Auschwitz-Birkenau. Quando finalmente pôde voltar para sua casa decidiu que testemunharia para todos o que havia vivido. E assim fez. Mas as pessoas ao redor não aguentavam ouvir tanto horror. E ele se viu sozinho, novamente, com sua história. Decidiu então que escreveria. O livro “É isso um homem” se tornou um clássico e um dos principais relatos do holocausto.

Assim como Levi, como os participantes do “Brasil: Nunca Mais”, nós também seguimos relatando os horrores com o documentário Coratio. Mas é preciso uma comunidade que escute. Não podemos continuar indiferentes perante tanta dor.

Ana Caroline Castro – jornalista, doutoranda em Ciências da Comunicação pela ECA-USP e diretora do Coratio. http://anacarolinecastro.com/category/projetos/coratio-documentario/

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