Por Letícia Genesini
Através da gastronomia o alimento eleva-se de nutrição à memória, origem e (por que não?) afeto
Este fim de semana foi a estréia da série documentário Cooked, uma produção da Netflix para o livro homônimo de Michael Pollan, e sim, eu assisti os 4 episódios praticamente em uma sentada. Veja porque você também deveria:
Mal acabei de ler, e “Cooked: A Natural History of Transformation” já se tornou um dos meus livros favoritos de não-ficção. Michael Pollan, o autor, é um jornalista e autor americano que se dedicou a estudar sobre o impacto, tanto nutricional, quanto ambiental, econômico e gastronômico, do aumento dos produtos alimentícios na nossa vida. Tendo escrito diversos livros que abordam este assunto sobre diferentes pontos de vista, como “The Omnivore’s Dilema”e “In Defense of Food”, não é de se estranhar que tenha sido “Cooked” a virar uma série televisiva. Já em seu prólogo o autor nos mostra o óbvio ululante: o sucesso de reality shows e personalidades gastronômicas coincidem com o afastamento das pessoas de suas próprias cozinhas.
O fascínio pela gastronomia não é de se espantar. Ela nos diferencia dos animais, não apenas pelo domínio do fogo, mas pela criação de uma completa cultura. Através da gastronomia o alimento eleva-se de nutrição à memória, origem e (por que não?) afeto. Mas, ao mesmo tempo que cultivamos este fascínio pela gastronomia, julgamos que cozinhar em si não é digno do nosso tempo. No entanto, a perda não é apenas simbólica. Essa nova dinâmica traz consequências significativas na nossa saúde, economia, ecologia, e, talvez mais importante, no nosso paladar. Já podemos ver que esta não é uma série gastronômica como as outras.
No livro, Pollan decide aprender o que ele considera ser os quatro principais pilares da culinária, metaforizados através dos 4 elementos: cozinhar com fogo, água, ar e terra. Em “Fogo”, ele foca no tradicional “whole hog barbecue” — o mais tradicional barbecue sulista americano que constitui em assar lentamente um porco inteiro em toras de madeira. “Água” narra as técnicas culinárias que envolvem líquido, aquelas que mais tradicionalmente fazemos ao fogão. “Ar”, fala sobre a panificação, principalmente a técnica “levian”; enquanto “Terra”, fala da fermentação dos mais diferentes alimentos, em especial queijos e cervejas. Sempre acompanhado de especialista e com descrições que dão água na boca, ao contar sua jornada, Pollan nos mostra ainda a simbologia cultural de cada uma dessas formas gastronômicas, além de salientar como os atalhos tomados para criar os tão práticos produtos alimentícios significam uma perda da tradição local, do valor nutricional, do ambiente e, claro, do sabor — pois comer, e por consequência, cozinhar, não é um ato isolado, é uma teia de ecossistemas. A premissa e tese de “Cooked” é que há poucas coisas mais importantes, embebidas em significado e consequência do que cozinhar.
“Haveria prática menos egoísta, trabalho menos alienante, tempo menos gasto, do que preparar algo delicioso e nutritivo para as pessoas que você ama?” (Michael Pollan)
A série, por mais excelente que seja (de fato ela é, e eu planejo rever muitas e muitas vezes), não consegue extinguir os assuntos do livro. As imagens não tão belas quanto a também produção da Netflix, “Chef’s Table”, acabam por perder muito do romance pela comida que tão bem narra Pollan. Ela serve como uma grande introdução a estes questionamentos, mas não consegue trazer todos os pontos e nuances apresentados no livro que tão elegantemente levanta todas essas diferentes esferas sem nunca trazer o tom do eco-chato ou do vigilante nutricional, mas mantendo sempre o ponto de vista mais envolvente, e por isso convincente, de todos: o do apaixonado pela comida. Aliás, entre concordâncias e discordâncias, é isto que eu mais gosto na narrativa de Pollan, a evidência sempre latente de que a ideia que muitos nutricionistas insistem que comida é para nutrir o corpo e não ser amada é o maior dos absurdos. Não só o ser humano é o único animal que come por prazer, mas é o único capaz de imprimir uma história e identidade em sua narrativa. Como Pollan mesmo mostra, está em nós a ideia de que cozinhar é um rito que nos aproxima dos deuses, está em nossas culturas desenvolver iguarias tal qual originais a ponto de que sua apreciação lhe diz “é aqui que pertenço, você não”, e está nos aromas nas nossas memórias. Comer é um ato sentimental e deve ser cada vez mais visto como tal, porque só alguém que realmente ama comida sabe que o pão de forma, de pão só tem o nome.
A série ainda acessa de frente as questões como glúten e vegetarianismo de forma previsível e pouco sutil, enquanto no livro, a narrativa dedilha sobre polêmicas sem entrar em dualismo de lados e mantendo sempre a máxima do trabalho de Pollan: coma comida de verdade. Porque sim, pode um dia haver, embora eu duvide muito, um consenso científico nestes debates, porém enquanto a maioria das pessoas considera um extremo evitar produtos alimentícios e retira, por paradoxal que pareça, a comida de sua alimentação, para mim jogar luz em um debate como este parece, sinceramente, de menor importância.
As falhas na série não são de modo algum ônus da produção, mas o fato de que, as páginas e páginas de dados e reflexões do livro exigiriam um longa-metragem para cada capítulo. A verdade é que informação é muito como comida, as melhores vão sim exigir dedicação e, claro, tempo. É difícil não fazer essa relação quando se tem um site que busca ao invés de contar a dieta da moda, informar de fato o que é comida de verdade, mas espero que essa mensagem não seja só minha — e não é:
“Em um mundo em que são poucos aqueles ainda com a obrigação de cozinhar, escolher fazê-lo é um protesto contra a especialização — contra a total racionalização da vida. Conta a infiltração de interesses comerciais em cada figura de nossas vidas. Cozinhar por prazer, dedicar uma parte de lazer a isso, é declarar nossa independência de corporações que buscam organizar cada momento em uma nova ocasião de consumo. (…) É rejeitar a debilitante ideia que, ao menos quando você está em casa, produção é um trabalho que convém a outro fazer, e que a única forma legítima de lazer é consumo. Essa dependência que os marketeiros chamam de “liberdade”. (Michael Pollan)
Então, fica meu pedido: veja a série, esta e muitas mais; leia o livro, este e muitos mais; leia artigos, este e muitos mais; e não delegue a outros a construção sinestésica do seu corpo, memória e saber.
Letícia Genesini é escritora, estrategista e uma das fundadoras do portal São Paulo Saudável.
Artigo publicado no portal São Paulo Saudável http://saopaulosaudavel.com.br/cooked-porque-voce-deveria-cozinhar-mais/
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