Conversação TerraDois: um tempo kairótico 19/12/2017

Por Clóvis Pinto de Castro

“Que antes renuncie a isso [Psicanálise], portanto, quem não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época”. (Jacques Lacan)

A Conversação Clínica do Instituto da Psicanálise Lacaniana (IPLA) realizada em 2017 foi uma experiência fecunda. Não se limitou ao cumprimento de um ritual de prestação de contas ou de apresentação formal dos trabalhos do final de um ano letivo. Foi muito além. Tocou, sensibilizou, desalojou. Saiu do lugar comum. Possibilitou novas experiências para a formação psicanalítica. Foi um tempo fora do tempo.

Há, na mitologia grega, dois deuses que determinam a qualidade e intensidade dos tempos que atravessam o nosso cotidiano: Chronos e Kairós. O primeiro é da ordem do que pode ser medido, cronometrado, controlado. É o tempo que marca os segundos, minutos, as horas e nos acompanha do nascimento à morte. O segundo, Kairós, está vinculado ao tempo oportuno e às experiências significativas. Tem a ver com os momentos que nos encantam, nos convocam e com aqueles que transcendem a dimensão cronológica. A Conversação foi entrelaçada por esses dois tempos. Chronos marcou o cumprimento do programa. Da sexta-feira à noite ao sábado à noite, ele se fez presente para indicar os momentos da abertura, das apresentações, dos intervalos e do encerramento. Enquanto Chronos cumpria seu papel burocrático e secundário, Kairós reinou. Possibilitou a todos os conversadores um tempo que nenhum relógio pode captar: um tempo kairótico.

O tema da Conversação deste ano – A Clínica Psicanalítica de TerraDois – teve como referência principal o Programa TerraDois da TV Cultura, recém- premiado pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) como o melhor programa da televisão brasileira em 2017, cujo idealizador e principal protagonista é Jorge Forbes, presidente do IPLA. TerraDois, expressão criada por Forbes, é uma forma de identificar os impactos da pós-modernidade no cotidiano. Habitamos um novo planeta. Muito diferente de TerraUm. A geografia é a mesma. Fora isso, tudo mudou ou está em processo de mudança. Segundo Forbes: “Do nascimento à morte, passando por todas as etapas da vida – educar, estudar, amar, casar, trabalhar, procriar, profissionalizar, divertir, aposentar – tudo é radicalmente diferente”. 

Nesse novo mundo, as pessoas articulam-se em rede e criam um novo laço social a partir de relações horizontalizadas. A sociedade hierárquica e patriarcal de TerraUm está ficando cada vez mais no passado. Esse novo cenário exige a reinvenção da psicanálise, uma clínica pós-edípica para operar o Real em um mundo em transição. Trata-se da psicanálise além do consultório. Trata-se do analista cidadão. 

Lacan, no texto “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”, de 1953, já alertava para o perigo dos psicanalistas não estarem à altura do seu tempo: “Que antes renuncie a isso [Psicanálise], portanto, quem não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época”. Forbes, com sua práxis, dá consequência a esse aforismo lacaniano. De forma clara, objetiva e didática, estabelece conexão entre a psicanálise e a “subjetividade de sua época”. Como disse a atriz Bete Coelho, na abertura da Conversação: “Forbes é o poeta da psicanálise. A convivência com Forbes no programa TerraDois me permitiu conhecer um outro lado da psicanálise”. Ela demonstrou sua grata surpresa diante de um pensar psicanalítico que se coloca na arena pública com pertinência. Com humor, Bete destacou: “Tem uma festa rolando e vocês não estão convidando ninguém”. Com isso, realçou a urgência de um programa como esse para ampliar o diálogo com diferentes setores da sociedade. 

Um dos diretores do Programa TerraDois, Ricardo Elias, destacou a importância da tradução que Jorge Forbes faz de conceitos tão complexos da pós-modernidade para uma linguagem acessível. Segundo ele, esse foi o grande desafio enfrentado por todos os envolvidos na produção, criação, dramaturgia e apresentação do programa: colocar numa nova estética televisiva algo tão inovador e atingir um público para além do mundo psicanalítico. Seria como inovar na inovação. O prêmio da APCA é um dos indicadores de que a equipe cumpriu bem essa missão. O cenário do programa TerraDois é um setting que, mesmo sem poltrona ou divã, consegue se instalar como lugar de escuta psicanalítica. 

No segundo dia da Conversação, ainda sob a dimensão de um tempo kairótico, foram analisados quatro episódios do programa TerraDois: “O chefe que virou chef”; “Versão do amor”; “Caffeine” e “Envelhecência”.  Os grupos de trabalho do Corpo de Formação em Psicanálise do IPLA e os comentadores convidados não ficaram restritos a uma apresentação formal, conceitual. Destacaram pontos importantes dos episódios analisados e dos efeitos da transmissão da psicanálise nesse formato televisivo, como no caso de Ariel Bogochvol, que, numa interpretação criativa, teorizou TerraDois com base na teoria dos discursos de Lacan. As apresentações dos trabalhos foram regadas por performances, poemas, cantos. Diferentes linguagens para expressar a complexa transição entre TerraUm e TerraDois.

Jorge Forbes, no início da conversação, já havia apontado que sem criatividade – na esfera da invenção e da responsabilização ética – não é possível operar e interpretar o Real que nos atravessa. Para povoar esse novo planeta, será fundamental sair da esfera da moral e de suas velhas receitas reacionárias. Para Forbes, a ética é a principal orientadora de TerraDois: “A ética é a moral atravessada pelo Real”.

Diante da angústia das novas possibilidades de habitar o mundo, muitos optam pelas respostas prontas dos livros de autoajuda, das religiosidades mágicas, das propostas políticas reacionárias.  São sucedâneos de uma moral reducionista, que acalmam os que têm medo de enfrentar uma viagem para um novo mundo sem bússolas, receitas prontas e manuais. TerraDois não é um lugar para covardes. Frente ao impossível, o Real, o que fazer? Inventar sobre o silêncio e se responsabilizar por sua invenção, diz Forbes. Segundo ele, a pós-modernidade tem que responder ao real. E não tem retorno.

Habitemos TerraDois.

Dr Clóvis Pinto de Castro é membro do Corpo de Formação em Psicanálise do IPLA.

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