Por Leda Guerra
A formação do analista coloca-se a partir do atravessamento de uma experiência da escuta do inconsciente e não de uma exigência acadêmica e formal
Ausência
Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada,
aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.
Carlos Drummond de Andrade
Ser um analista implica o consentimento radical de um desejo, o desejo do analista. Implica uma aceitação da condição de incompletude, falta a ser, de onde melhor ele dirige um tratamento. Implica conquistar uma solidão, uma capacidade de estar sozinho nessa lógica de presença/ausência. Pensar sobre essa ausência, essa fenda, essa falta, propõe pensar também naquilo que indica a transição de analisando a analista, pois esse percurso convoca-nos a uma reflexão que é da ordem da relação entre experiência e elaboração, circunscritas nos domínios da análise pessoal, da supervisão, dos estudos teóricos e de suas consequentes produções escritas.
Tornar-se analista significa seguir os passos de seu fundador, o que consiste em desvendar a psicanálise de maneira singular, reinventando seu caminho, encontrando seu estilo, o qual deve estar assentado na teoria e na técnica cujo comprometimento ético e estético difere de todas as intervenções terapêuticas até então existentes.
Freud desde sempre, mas em especial no texto de 1926, “A questão da análise leiga”, deslocou a formação do plano acadêmico e advertiu acerca da importância da análise pessoal como condição essencial na formação do psicanalista, acreditando que só no curso desta o sujeito tem a experiência de que ele mesmo é afetado pelos processos afirmados pela análise, que adquirem as convicções pelas quais são ulteriormente orientados como analistas.
Ele assim deixou muito claro o advento de um aprendizado no próprio domínio do dispositivo analítico – entendendo dispositivo analítico como um lugar específico no qual um analista estabelece uma maneira absolutamente particular de conduzir o trabalho com o analisando. Vale então enfatizar que esse “aprendizado” é da ordem da elaboração, ou seja, não se assemelha em nada a que venha a ser de ordem intelectual. Refere-se, antes, a um trabalho pulsional que opera uma mudança do ponto de vista subjetivo no aparelho psíquico.
A formação do analista coloca-se a partir do atravessamento de uma experiência da escuta do inconsciente e não de uma exigência acadêmica e formal. Pensá-la em termos formais assinala para uma compreensão de formação do analista pautada num funcionamento burocrático, em que o rigor é submetido a uma rigidez esvaziada de qualquer significado o que, inclusive, contraria a função do analista, que é a de causar o desejo a partir de uma operação feita do lugar de objeto, lugar que lhe é próprio.
Quando Lacan, em seu axioma, afirma que “um analista não se autoriza senão de si mesmo” não negligencia que deverá responsabilizar-se do “si mesmo” que confere essa autorização. Enganam-se os que pensam que o fato de o analista se autorizar por si mesmo poderia constituir uma tarefa fácil por não depender de outrem, nem tampouco de uma legitimação externa, tais como um certificado, um atestado ou um documento. Sim, depende em última instância tão somente de si mesmo. O que não exclui o vínculo com uma instituição psicanalítica, o convívio com os pares-ímpares, o trabalho de supervisão feito por um analista mais experiente, a produção da psicanálise somada à necessária análise pessoal para dar sentido à formação do analista.
É o desdobramento da experiência de análise levada a termo que permite a passagem de analisando a analista. Não sem motivos, vemos aí a concepção de Lacan, para quem todo final de análise produz um analista. Como afirmou em 1973, na Nota Italiana: [“Se ele não é levado ao entusiasmo, é bem possível que tenha havido uma análise, mas analista, nenhuma chance”.
Leda Guerra é psicanalista, historiadora e professora da Universidade Federal de Alagoas