Por Elisa Padovan Camillo
O diagnóstico não pode ser feito através de um corte transversal, ou seja, em apenas um encontro com o paciente, mas sim ao longo de vários encontros
Como a droga funciona?
Antes de responder essas perguntas é preciso entender o que é doença mental e como se faz o diagnóstico psiquiátrico. A partir disso, será possível localizar a necessidade ou não do tratamento medicamentoso e discutir a respeito das vantagens e limitações das drogas na psiquiatria.
Dentre os diversos conceitos a respeito de doença mental, escolho um em especial, trabalhado pelo Dr. Carol Sonenreich, psiquiatra fundador do serviço de psiquiatria do Hospital do Servidor Público Estadual, instituição pela qual me formei psiquiatra. Para o professor Carol a doença mental existe quando o indivíduo perde a capacidade de escolher e agir de acordo com a sua vontade. A doença limita a liberdade para escolher, tal como quando se deixa de sair por medo de sofrer um ataque de pânico, ou de realizar uma vontade por achar que o mundo irá logo acabar, ou de não deixar de beber mesmo sabendo que o álcool está causando danos a sua saúde. (1) Deste modo, entende-se que a doença mental é a perda da capacidade de fazer escolhas, de conviver e de se relacionar com o próximo.
Uma vez definido esse conceito, o psiquiatra terá que formular uma hipótese de trabalho, para que a partir daí planeje um tratamento. Quando falo sobre uma hipótese de trabalho, me refiro a uma hipótese que poderá mudar em qualquer momento do acompanhamento psiquiátrico. O diagnóstico não pode ser feito através de um corte transversal, ou seja, em apenas um encontro com o paciente, mas sim ao longo de vários encontros. Será necessário observar como aquele ser está para o mundo, quais são suas vivências e de que forma elas compõem sua biografia, constituindo uma linha de raciocínio horizontal para o diagnóstico em questão. Cabe lembrar que isso nem sempre é feito assim. Talvez para muitos psiquiatras, esse método seja considerado ultrapassado.
Atualmente a psiquiatria utiliza duas classificações diagnósticas oficiais das doenças, uma elaborada pela Associação Americana, o código DSM V, e outra que segue o sistema europeu, ligado à Organização Mundial de Saúde, chamado CID 10. As duas classificações surgiram porque seus criadores esperavam eliminar, ou diminuir, as divergências no diagnóstico psiquiátrico, instituindo uma postura ateórica, e acreditando que estes procedimentos garantiriam o caráter científico da nosologia. (2) A confiabilidade diagnóstica não foi atingida e entre DSM V e CID-10 existem nítidas discordâncias. A esperança de delimitar doença pela descrição e soma de sintomas não foi bem sucedida. (2) É preciso entender que a psiquiatria representa um corpo de saber, produto da atividade dos médicos. E uma atividade humana, não limitada às operações, mas inserida nas relações humanas e na comunicação. (2) Nisso incluem-se as lendas, os mitos, as artes e a poesia, modos pelos quais o ser humano procura saber, entender, explicar sua existência. As hipóteses de trabalho são construídas sob pontos de vista médicos, levando em consideração todos esses fatores e de forma alguma têm a intenção de colocar uma etiqueta no paciente, dizendo a ele: você é um alcoólico e ponto. Não se trata de chegar a uma unanimidade diagnóstica que garanta o valor e a eficácia no combate da doença, mas sim, que a partir de modelos teóricos se construa um ponto de partida, sem a necessidade de se fixar nisso, pois as hipóteses podem mudar e a escolha do tratamento também.
Esclarecidos esses aspectos, podemos então caminhar para o tratamento e as medicações. Outro ponto delicado que deve ser discutido com muito cuidado. A psiquiatria hoje tem estreitado cada vez mais os laços com a medicina baseada em evidências (MBE). (2) Desde o início dos anos noventa, a Medicina Baseada em Evidências foi proposta como novo paradigma na psiquiatria, com a intenção de diminuir a ênfase dada à intuição, à experiência clínica não sistemática e às justificativas fisiopatológicas na tomada de decisões médicas. (2) As decisões terapêuticas tornam-se válidas somente quando orientadas pela MBE. Entretanto, sabemos que as evidências e as provas disponíveis nem sempre são satisfatórias para orientar as condutas psiquiátricas. A MBE adquiriu caráter tão importante, que muitas revistas avaliam somente os estudos randomizados-controlados como científicos. (2) Os relatos de casos, que retratam a experiência singular do psiquiatra, são deixados de lado e publicados na secção de cartas, sem a devida credibilidade, porque a singularidade não tem peso no contexto da MBE.
Finalmente, nesse ponto começo a responder a pergunta: como anda a droga na psiquiatria? A resposta é; depende sob qual aspecto baseamos nossa pergunta. Para a MBE, só vale o que os estudos científicos mostram, e na maioria deles, mostram que mais estudos devem ser realizados para que as conclusões sejam consolidadas. Alem disso, a MBE propõe o uso dos guidelines. Através de um guideline, a maneira mais adequada para tratar uma doença fica pré-determinada, partindo do princípio de que uma amostra de pacientes estudados, possa dirigir a prática para outros pacientes. As provas substituem o julgamento clínico. (2). A prescrição que se baseia pela soma de sintomas e pelos guidelines resulta na maciça medicalização dos pacientes, incidindo de maneira danosa sobre a saúde dos mesmos. (2) Portanto, sob os aspectos da MBE, penso que as medicações na psiquiatria vão mal.
Se então passarmos para a análise individual de cada caso, em sua subjetividade e singularidade, sem perder por isso o caráter científico, encontramos que é preciso saber indicar, nos casos necessários, que o paciente que nos demanda seja adequadamente e eticamente, medicado. (3) Não somos capazes de dizer exatamente sobre como os psicofármacos agem, mas sabemos que os psicofármacos não agem somente pela substância química que afeta nossos corpos, consequentemente, a alma e os pensamentos. (3) Podem também agir através do efeito placebo. Mesmo sem o efeito químico direto, o placebo promove repercussões neurofisiológicas sobre os corpos em questão. Além do mecanismo farmacológico, importa também a maneira como a medicação é prescrita. (3) Há práticas psiquiátricas que convocam o sujeito a responder, não confundindo causa com efeito, pois o fármaco não age senão sobre os efeitos e pode até determinar incidências sobre as causas, mas não sobre a causa enquanto lugar da verdade ou sobre o sintoma como o concebe a psicanálise. (3) Desse modo, a questão não seria se devemos prescrever psicofármacos ou não, e sim perguntarmos quem o prescreve e como o prescreve. Se for um psiquiatra que convoque o sujeito e utilize o psicofármaco para o barramento do gozo, que permita ao sujeito colocar-se em posição de questioná-lo, dando um acesso possível à palavra, então podemos dizer sobre práticas vizinhas, entre a psiquiatria e a psicanálise, que se articulam na mesma direção da cura. (3) Observando desse ponto de vista, posso dizer que a droga na psiquiatria vai bem. As medicações quando bem prescritas, evitando-se a polifarmácia indiscriminada, podem agir positivamente no individuo. (1) Nem sempre saberemos de que forma isso ocorre e nem sempre teremos resultados positivos. Isso não torna nossa prática menos importante ou dispensável. Pouco conhecemos sobre a mente humana e como se dão os efeitos terapêuticos e adversos. Por aí ficam diversas questões não respondidas; como poderia uma medicação ter um efeito antidepressivo em um paciente e em outro piorar a depressão?
O cérebro exerce funções que o tornam incomparável com qualquer outro órgão, por isso é mais conveniente concebê-lo como um processo e atividade, do que como massa material. (2). Alguns autores adotam posições dualistas, separando mente e cérebro, porém é difícil pensar a mente como um produto do cérebro. Seria mais interessante pensar que ambos estão incluídos numa mesma estrutura e sistema, hierarquicamente superior a estes dois elementos isolados, e que nos permite conceber uma nova manifestação: o psiquismo humano. (2) A psiquiatria oficial está sendo mais dirigida para o cérebro do que para a mente e esta abordagem pode ser considerada como um equívoco. Não deveria haver separação entre mente e cérebro, porque entender a mente como produto do cérebro é um reducionismo. (1) A despeito disso, a Psiquiatria sem reducionismos preconiza uma abordagem tanto do ponto de vista do cérebro como da mente. Como por exemplo, no alcoolismo, não podemos considerar que seja apenas uma doença provocada pelo efeito químico do álcool sobre os neurônios; é também uma doença provocada pelo modo de viver do paciente. Ser alcoólico representa viver de um modo diferente e o psiquiatra deve abordar a questão de ambos os pontos de vista. (4) O tratamento que fazemos hoje do alcoolismo, é quase idêntico àquele que fazíamos há 50 anos. Para progredir temos que criar conceitos e métodos de trabalho mais adequados. (3) Devemos sim incluir a pesquisa em nossa prática, mas talvez não fazer dela a única forma de clinicar. Se a clinica partir apenas da MBE, muitas perguntas continuarão sem respostas. Mas, se por outro lado, entendermos a doença mental além de um distúrbio neuroquímico e as medicações como adjuvantes em casos bem indicados, com um papel que ultrapassa a simples correção dos distúrbios, daí sim, poderemos progredir. Pesquisas neurocientíficas, psicológicas, psiquiátricas provam experimentalmente as incertezas, as complexidades e as precariedades da prática em geral. (3) O sistema de pensamento deve ser dirigido ao paciente, sem deixar de lado o caráter científico. Para dizer que a droga na psiquiatria não anda uma “droga”, seria preciso repensar completamente o diagnóstico e a classificação para validar os conceitos, sem tomar as pesquisas empíricas como absolutas e infalíveis, como garantia de caráter científico, acima de qualquer suspeita. Isto porque o status de ciência reivindicado pelos autores dos sistemas DSM e CID, e da mesma maneira pelos aderentes à MBE, não tem nos levado além de ignorarmos o humano em prol de uma suposta garantia, garantia essa que está longe de ser atingida. Elisa Padovan Camillo é psiquiatra formada pelo Hospital do Servidor Público Estadual e membro da equipe do Instituto da Psicanálise Lacaniana – IPLA. Este texto foi apresentado na Conversação Clínica do IPLA 2015. Referências bibliográficas
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